MEU ROMANCE

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O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Palestra ministrada por mim na UFT na II Semana Acadêmica de Medicina

Morte e Cultura

Antes de falar-vos sobre a morte, é imperioso, falar-vos, preliminarmente, de duas questões importantes relacionadas com a morte nas sociedades tradicionais africanas, asiáticas e indígenas: o culto aos antepassados e a ancianidade.

1. O Culto aos Antepassados.

Ele desenrola-se nestas sociedades com especial intensidade e freqüência

Para um membro destas sociedades, a vida social em toda sua totalidade, até a manifestação ou gesto mais gratuito, insere-se na necessidade e procura de equilíbrio entre os vivos e os mortos, entre o cosmos e toda a sociedade global, o presente e o passado.

O ser vivente está em contato com a sociedade global constituída por vivos e mortos, vivendo desta feita em igualdade na intimidade uns com os outros, pois essas sociedades compreendem os vivos e os antepassados, entre os quais há um constante intercambio de serviços e forças

Os antepassados são os dominadores da chamada “força Vital” e, por isso, possuem poder normativo sobre os vivos dispensando-lhes ou negando-lhes a força e os dons.

Além de legisladores, os antepassados são também guardiões dos costumes e leis, velando a conduta dos descendentes, que recompensam ou punem conforme sejam ou não observados os ritos e as leis.

A fidelidade as tradições, o respeito aos mortos e aos anciães bem como o cumprimento das cerimônias estão sob o seu controle.

Os antepassados desempenham ainda a função de conselheiros, podem transmitir ordens, inspirações e virtudes especiais aos vivos. Asseguram a boa ordem das relações sociais e a participação de cada um nas atividades sociais segundo a hierarquia de idade e sexo ou função. São ainda os preceitos da tradição ou a inspiração dos antepassados que adéquam os homens aos outros seres e estes ao homem. Punindo ou recompensando (causando doenças ou curando, provocando secas ou chuvas).

É por isso que estas sociedades tradicionais cuidam sempre de lhes oferecerem libações, sacrifícios e súplicas nas tumbas, casas, aldeias, campos, bosques e rios. Os ritos determinados pela tradição devem ser observados com exatidão e com cerimonial estabelecido. Qualquer deslocamento ou ruptura tem resultados nefastos e doutra forma, a represália seria imediata.

O culto aos antepassados decorre logicamente da ontologia d esses povos. Não é uma superstição, uma idolatria, nem a decisão angustiante de uma mentalidade primitiva como pretendem os euro-centristas ou os ocidentais. O culto aos antepassados brota desta feita como um ato de fé na sobrevivência da pessoa aqui e além...

Essa forma de ver o mundo considera tão real o invisível e visível, tem uma necessidade imperiosa e vital de continuar ligado aos seres mais influentes da sua comunidade mesmo que não existam fisicamente. Não nos esqueçamos de que estas sociedades valorizam mais o lado invisível dos seres do que o seu aspecto exterior. Somente a realidade invisível dos seres é autenticamente consistente e até supervalorizada...

Sem entramos por enquanto neste mérito, de ser ou não culto, é sem dúvida mais importante ver que o ato encerra “per si”. O culto, em definitivo, potencializa a vida comunitária e mantém viva em cada membro a responsabilidade de se entregar como uma obrigação ética do maior valor e da maior dignidade destas sociedades tradicionais. A sabedoria ancestral encontrou nele o meio mais apto para consolidar a união entre os vivos, paz e harmonia sociais, ao reunir os membros do grupo em torno da sua comunidade.

O individuo participante toma consciência de ser útil, de viver ao serviço do grupo e de que a sua apostasia pode ser fatal tanto para ele como para a sua comunidade. Sua vida atinge uma finalidade; não encontra o absurdo nem o vazio; e a sua dedicação à solidariedade fortifica a comunidade e o robustece a esperança. Também reforça a autoridade, porquanto atualiza a presença do epônimo e dos antepassados ilustres que anatemizam os dissidentes, dando coesão às estruturas de parentesco c e garantido a sua continuidade, visto que a fecundidade é o dom dos antepassados. Não será acertado em vez de falar de culto aos antepassados falar de um culto à vida? Por intermédio dos antepassados? O culto aos antepassados talvez realize apenas uma imprescindível mediação. Eles seriam os mediadores poderosos, queridos com paixão e temidos até ao teor, ante as reservas mais pujantes da vida.

2. A Ancianidade


Nessas sociedades, a idade, a ancianidade, além de ser uma qualidade pessoal e biológica é, sobretudo uma qualidade social, pois através dos anciãos- quase despegados dos vivos e assimilados aos mortos – manifesta-se o poder dos antepassados. Os anciões, em especial o chefe, o mais-velho, o sekulo(velho), o cacique, são intermediários entre os vivos e os mortos, e prestam o culto supremo aos antepassados.

Assim, nestas sociedades as relações sociais caracterizam-se por uma relativamente clara hierarquização baseada na sucessão cronológica das pessoas. “No cume encontram-se os grandes antepassados da família e depois os descendentes, segundo a ordem de antiguidade: em seguida vêm os vivos: em primeiro lugar, o patriarca, o mais antigo... depois os anciãos e, por último, os mais-novos...

É frequente os chefes e os velhos especularem com poderes mágicos pata assegurarem o seu prestígio, para conseguirem favores e manterem privilégios. Justificando deste modo a decrepitude. A sua eficácia no manejo das forças mágica e na transmição de enfermidades ou desgraças é infalível.

Na realidade com a velhice chega à plenitude social, política e religiosa do homem. Converte-se numa pessoa sagrada. O último mandamento que ensina aos jovens os Nhanek-Humbe diz assim: Na guerra não mates os velhos. Um velho é um “epa iyohi”, que quer dizer, duro e respeitável como crosta da terra, ou noutro sentido, deve ser apreciado, como uma planta medicinal do mesmo nome.

Esta auréola sacra tem uma explicação: o velho encontra-se mais perto da morte, vive em contato especial com o mundo invisível por estar na fronteira de dois mundos. Pode servir de ponte sobre a qual circulam a os mortos e os vivos. A sua pessoa torna-se transmissora da força vital. Ouve a voz do mundo invisível ao qual transmite os anelos da sua descendência e grupo por quem vela.

A comunidade sabe que, em breve, transformado em antepassado, crescerá no velho a “força vital” e poderá decidir a sorte dele. Nos velhos confluem sentimentos contraditórios, pois é tão venerado como temido. De fato, o seu poder é ambivalente.

Pelo seu conhecimento e experiência os usos, costumes e ritos é depositário da sabedoria e seu zeloso guardião. A sua voz junta-se à tradição e à alma comunitária. Só ele explica os segredos da magia e a última razão das coisas. Os velhos falam, os jovens escutam e os homens maduros consultam-nos. Somente eles acumularam a plenitude da sabedoria. Eles são as verdadeiras bibliotecas vivas, desempenham uma missão cultural insubstituível que não podem atraiçoar com medo represálias dos antepassados por isso guardam fidelidade total a tradição e não toleram nem, desvios nem inovações.

O velho dirige, em virtude do poder de sanção de que dispõem os antepassados que ele representa. O poder dos velhos é enorme e só são postos em causa quando as instituições que ao suportam ou as barreiras que defendem se modificam ou quebram.

A MORTE É UMA VIAGEM...

A proposta de imortalidade do homem explica em grande parte a extraordinária importância que é atribuída à morte e às cerimônias funerárias. De fato, a morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em que se encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado este que faz configurar a existência visível. Tal capacidade torna a morte um evento abrangente devido à interferência que exerce em vários níveis da realidade, desde as concepções que definem o homem até a necessidade de recomposição dos papéis sociais, principalmente quando sua ação recai sobre mandatários de significado social mais abrangente, como chefes de família, de comunidade ou reis, figuras que tendem a sintetizar as ações históricas mais expressivas para o grupo segundo os valores que caracterizam as civilizações negro-africanas. Para os bantu, a morte é um acontecimento brutal, contrário à natureza e à harmonia, visto que, embora sempre permaneça a esperança ontológica, destrói certos componentes da pessoa. Acarreta uma diminuição da vida.

Vêem-na como um fracasso da solidariedade, a máxima perturbação da participação vital, uma conseqüência da fragilidade humana. Por isso cada morte entristece o grupo, alerta-o contra repetições e, se não for violenta, agita a comunidade que emprega a terapêutica místico-mágica para remediar o desconcerto.

Causa uma desordem social porque a participação foi perturbada e a interação transformada.

A morte patenteia uma ação hostil, desagregadora. Nada aparece mais anti-social e desordenado do que “comer uma vida”, usurpar a um indivíduo o direito de viver com intensidade e privar a comunidade duma riqueza.

É sempre dolorosa, denunciadora de ameaças para a comunidade. Juntamente com a esterilidade, constitui a mais grave desordem e a maior ofensa à pessoa que, embora continue a viver com os antepassados, perde uma parte constitutiva.

Todavia, vimos morrer uns tantos bantu e assombra-nos comprovar que a sua morte não foi dramática; aceitaram-na com resignação, paz e calma. Não houve um gesto de revolta, nem uma só queixa. Parece que a morte não os assusta.

Talvez uma primeira explicação para tal atitude provenha da convicção de que não tem que dar contas das suas ações terrenas. Não sentem a incerteza do prêmio ou do castigo, nem há lugar para remorsos ou inquietação para o futuro. A morte é misteriosa na sua causa, mas realizadora duma vida nova. A razão exata talvez se apóie na convicção de que a morte não pode levar a nada: depois da morte encontrar-se-ão com os antepassados e continuarão unidos aos vivos. A solidariedade não se dilui, viverão em família.

A morte é uma viagem. No termo voltarão a encontrar os seus, já que os laços não se rompem. Também é certo que depois duma história de guerras, epidemias, fomes, escravidão e enfermidades endêmicas, já se habituaram a morrer. A mortalidade é tão elevada e a morte tão imprevista que se lhes tornou familiar. Esta familiaridade com a morte é também uma herança angolana.

A sociedade, entretanto, reorganiza-se rapidamente a fim de promover a superação da morte e restabelecer o equilíbrio, o que é conseguido através das cerimônias funerárias. Nestas, uma proposição básica é a da superação cultural da morte através de atos tendentes a caracterizar a natureza exterior à ordem social que lhe é atribuída. Outra dimensão fundamental das cerimônias funerárias é a da participação efetiva da sociedade nos processos de separação dos elementos vitais que constituem o homem, desagregados pela ação da morte, fazendo-os inserir-se em instâncias precisas da natureza, como a terra que recebe o corpo – salvo nos casos de mumificação – e as massas de vitalidade às quais geralmente retorna o princípio de animalidade e espiritualidade. Já o princípio vital de imortalidade é encaminhado ao mundo privativo dos ancestrais, no qual passa a manifestar-se, em outras condições existenciais e desde que não venha a fazer parte de um novo membro da comunidade. Esses fatores explicam a notável importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser consideradas como ritos de passagem, de outro se constituem em ritos de permanência, pois delas nascem os ancestrais.

A complexidade das cerimônias funerárias não é devida, portanto, a fatores de ordem psicológica; elas revelam a capacidade de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social. Assim como nos processos de formação da personalidade, a tarefa de promover a superação da morte é atribuição e responsabilidade da comunidade como um todo. E é por essa razão, também, que se respeitam pessoas mais velhas nessas sociedades!


10 de novembro de 2009- A imagem é da versão angolana dos simpsons