MEU ROMANCE

MEU ROMANCE
O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


domingo, 7 de novembro de 2010

NOVO LIVRO DE CONTOS DE JOÃO PORTELINHA

  

       


                                          
    
 Dona Biatriz Kimpa Vita, a guerreira esquecida
                         (c. 1682 a 1706)

Fala-se muito das Amazonas da Grécia, das Américas, da Europa e da Ásia... Foram ou não uma realidade? E as amazonas angolanas? Aquelas mulheres guerreiras que derrubaram preconceitos e cada dia lutaram contra a dominação colonial, contra invasões estrangeiras, contra a cultura, política e religiões impostas, que se notabilizaram e não são muito faladas...  
Que cessem as amazonas e as musas do sábio Grego e do Troiano. Da fama e das vitórias que tiveram; que eu canto o peito ilustre afro-angolano a quem Nepturno e Marte obedeceram: Cesse tudo o que a Musa Antígua canta que outro valor mais alto se levanta!

  Entre as guerreiras gloriosas, de que a humanidade guardará a eterna e agradecida memória, avulta a Dona Kimpa Vita*, sacedortiza popular no reino do Congo, uma precursora das figuras proféticas das igrejas independentes e a criadora de um movimento que utilizava os símbolos cristãos, mas revitalizou as raízes culturais tradicionais do Kongo. Não usou espada, nem armas, não derramou uma gota de sangue humano, sequer. No entanto, encetou muitas batalhas na segunda metade do século XVII contra a desintegração cultural e um desarranjo político no reino Kongo (território que hoje faz parte Angola, Zaire e Kongo). As forças do reino do Ndongo haviam vencido o Kongo...
  No final de seiscentos, o Kongo possuía três reis, sendo D. Pedro IV o mais poderoso deles, aparentemente, e talvez o único capaz de levar adiante um projeto de reunificação congolês. Dentro desse vácuo cultural e político, diversos profetas messiânicos surgiram para proclamar suas visões sócio-religiosas. A mais importante entre eles foi Kimpa Vita, uma jovem moça que acreditava estar possuída pelo espírito de Santo António de Pádua, um santo católico popular e realizador de milagres. Na realidade a cristandade de Kimpa Vita já havia caído no sincretismo, uma mistura do cristianismo com as religiões tradicionais africanas...          
Em Mbanza Kongo, o primeiro galo cantara, quando o manicongo, Dom Pedro IV, se levanta e convoca os mais-velhos para uma reunião importante cuja pauta principal é debruçarem-se sobre a situação caótica que vive o reino...
- Para além de sermos agora vassalos do reino do Ndongo, meus caros amigos, ainda temos um grande problema -  o começo das secas!  Benéficas as calamidades públicas que assolam, circunscritas, a nossa terra... Quando o sol - apontando um dedo em sua direção -, que deve reanimar a natureza mata as plantas e os viventes; quando os crepúsculos assemelham-se a fornalhas de cobre candente que abrasam os caminhos e os campos; e a fome e a morte levantam-se das plantações que torram, das fontes sem água como órbitas vazadas, do fumo que ondula em espirais fantásticas das matas que se incendeiam, o nosso povo e os seus sarcedotes devem refugiavam-se aos nossos antepassados, com o fim de obter deles intervenção no sentido de resolvermos os problemas que assolam o nosso reino! – Falou manikongo aos seus súditos.

- E a Cristo e a Santo António também, Majestade! – Disse Vita, uma jovem aristocrata, nascida de família nobre congolesa na década de 1680, batizada como Dona Beatriz, mulher que fora sacerdotisa do culto de Marinda (nganga marinda), embora educada no catolicismo. Kimpa Vita contava entre 18 e 20 anos quando, cerca de 1702-1703, acometida de forte doença, disse ter falecido e depois ressuscitado como Santo António. E seria como Santo António que ela pregava às multidões do reino – daí o movimento ter ficado conhecido como antonianismo – seguindo o rasto de outras várias profetisas que lhe precederam na mesma tarefa, como a profetiza Matuta, em meio à crise que assolava o reino.

DOM PEDRO: Vita existe uma união indissolúvel entre nós, os nossos antepassados e as gerações futuras! Este traço de união é que põe em movimento o ritmo dos tempos e das estações do nosso reino e do universo; ela faz a chuva; implora a lua e o sol. Ela possui o raio, o vento, a trovoada... 

E continuou...

- Para nós, a religião católica trazida pelos maniputo não se mostrou eficaz contra os infortúnios que assolavam o nosso reino. Não estão vendo?  Além disso, os nossos nobres resistem em aceitar a monogamia imposta pelos padres capuchinhos! 

Na realidade é um dos temas mais polêmicos na aceitação da nova religião, uma vez que a extensão da rede de solidariedades tecida pelos casamentos era e é peça fundamental nas relações de poder tradicionais..
.
KIMPA VITA: Mas Majestade agora não somos todos católicos? Fomos batizados na religião do maniputo não devemos apenas fazer apelo aos nossos antepassados, a Cristo e a Santo António também! E finalmente, não vos posso dizer todas as coisas que podeis cometer em pecado; porque há vários modos e meios, tantos que não posso enumerar, mas uma coisa posso dizer-vos se não tomardes cuidado com vós mesmo e vosso pensamento, vossas palavras, vossas obras e não observardes  os mandamentos  de Cristo nem continuardes tendo fé, certamente perecerás! 

DOM PEDRO: Mas Vita o Deus do maniputo não fala conosco ao contrário dos nossos antepassados que são onipresentes? 

O culto aos antepassados constituía como que a síntese da vida religiosa dos congoleses.

- Manicongo, não atendendo nós nas coisas que se vêem e se ouvem, mas sim nas que não se vêem e não ouvem teremos a misericórdia de Deus e a ressurreição; porque as que se vêem e se ouvem são temporais, enquanto as que não se vêm e não se ouvem são eternas! – Retorquiu Kimpa Vita a jovem mais bela congolense. 

DOM PEDRO:  Não entendi muito do que falastes... E a ressurreição?

KIMPA VITATu, Manicongo, melhor do que ninguém sabes que existe! Eu mesma com aos 18 anos acometida de forte doença morri e depois de ter falecido ressuscitei!

DOM PEDRO: Porque dizes ter falecido e não falecida? Tu não és uma mulher?

KIMPA VITA: Porque ressuscitei como Santo António, Majestade! E é como Santo António que eu vos falo e prego às multidões do nosso reino! 

DOM PEDRO: Mas eis que tomarei estas tuas palavras que contêm profecias e revelações e pô-las-ei eternamente em minha memória porque me são preciosas; e sei que serão preciosas também para o meu povo! 

 Embora ele não concordasse em tudo com D. Vita, tinha muito respeito pela sua autoridade. Foi ela quem o proclamou Rei do Congo em troca da sua adesão ao antonianismo. Assegurou-se ainda, por meio de vários acordos, da aliança de famílias nobres adversárias de D. Pedro, a exemplo dos grupos de Kimpanzu, especialmente da família Nóbrega, enraizada no sul da província de Nsoyo. Embora a sua pregação possuísse forte conotação política. Pois, preconizava o retorno da capital a São Salvador e a reunificação do reino, chegando mesmo a envolver-se nas lutas facciosas da época. No entanto, as alianças estabelecidas por Kimpa Vita, metamorfoseada em Santo António, não eram, porém resultado de mero cálculo político. Sua teoria ancoravam-se numa cosmologia complexa e peculiar; uma modalidade remodelada e completamente africanizada do cristianismo. Com efeito, para a profetiza conguense existia uma unidade significativamente organizada, de modo que Cristo, apesar de ser totalmente “OUTRO” não aparecesse como alguém “FORA” do contexto cultural a conhecer apenas através dos seus atributos, mas na totalidade de ser e da vida. Certamente encontramos aqui a ideia de ligame entre o homem e Zambi, o Cristo. Para ela, este ligame alarga-se também aos antepassados que estão em contato mais direito com o homem...

Dali a dez dias, Os Padres capuchinhos voltariam ao reino. Vita entregava-se com frenesi àquele amor a Santo Antonio, a virgem Maria e a Cristo... Apesar das ameaças dos padres católicos que viam nela uma forte concorrente, Vita saia furtivamente todas as noites, para pregar o seu Movimento e só voltando de madrugada... Depois começou a pregar na cidade congolesa de São Salvador, a qual declarou ser desejo de Deus que fosse novamente tornada capital. Seu apelo pela unidade obteve um grande apoio entre os camponeses, que migraram em massa para a cidade, identificada por Kimpa como a cidade bíblica Belém. 

KIMPA VITA: Meus queridos irmãos Cristo quer que esta linda cidade se torne novamente capital do nosso reino!  Ninguém pode tirar este desejo de dele! A nossa cidade é a verdadeira Belém... É aqui que nasceu Jesus.  Acreditem, todas sextas – feiras eu almoço com Ele, desde aquele dia que eu morri e ressuscitei como santo António! A mãe de Jesus, Virgem Maria é preta! Ouviram? Não é branca como os padres dizem ser! Ela foi filha de uma escrava aqui mesmo em Belém, aqui em São Salvador... Virgem Maria foi criada pelo Marquês de Zimba Npanghi! Ouviram? São Francisco também é daqui, pertenceu ao clã do marquês de Vunda! Vocês querem ou não querem que a capital volte para cá?

      - Queremos! Queremos! Queremos! - Grita a multidão

A população pediu para acompanhá-la. Prometeram obedecê-la e foram aceitos... Seu apelo pela unidade obteve um grande apoio entre os camponeses, que migraram em massa para a cidade, identificada por Kimpa como a cidade bíblica Belém. Ela disse a seus seguidores que Jesus, Maria e outros santos cristãos haviam sido realmente congoleses. Vita dava as suas roupas aos indigentes, que encontrava à beira dos caminhos. Apenas ficou com a tanga e uma manta parda. Como quase não dormia, seu rosto moreno tinha um tom azulado, os olhos cansados estavam cercados por profundas olheiras com jejuns constantes e prolongados; ela andava por toda a parte com o rosto completamente descoberto, daí por diante, limitava-se a fazer uma única refeição por dia,... No entanto, seu olhar tornava-se triste, sempre que via os mercadores de escravos, ou via seus familiares enlutados que choravam a sua partida. Embora se considerasse católica apostólica romana! Ficava irada quando, ao atravessar uma aldeia, topasse com alguns dos seus desafetos - geralmente padres capuchinhos - falando mal de si!  Para estes, ela era simplesmente uma falsa profetiza! Uma grande pecadora! Por isso, tempos depois foi capturada...

PADRE: Então Dona Biatriz Kimpa, a senhora e o general, súdito do rei Pedro IV, estão conspirando contra o manicongo?

As relações de amizade entre Dom Pedro IV e Vita eram tão extraordinárias e evidentes que ninguém imaginaria que tempos depois ele, Dom Pedro, facilitaria a sua captura

KIMPA VITA: Bem, o senhor padre é congolês?


PADRE: Não! Porquê?

KIMPA VITA: Mesmo que assim fosse, os senhores são estrangeiros no meu reino. Não é legítimo julgarem-me por desobediência ao meu próprio soberano! Creio ser um assunto domestico Senhor!

Havia um crucifixo na parede do convento... Mas nada disso agora era digno de ser olhado. Afinal tudo era mentira; tudo naquela sala era um fedor; tudo recentia a falsidade, tudo criava a ilusão de significado, de felicidade, de religião, misericórdia, perdão, beleza, e, todavia, não passava de putrefação oculta... Amargo era o sabor do mundo dos padres... A vida era um tormento com aqueles que diziam apregoar a VERDADE DIVINA!

 PADRE: Você viu aquela cruz, lá na parede? É bem branco.


KIMPA VITA: Eu não gosto de cruzes! Foi nela que Deus foi crucificado. Por exemplo, uma faca que mata alguém que nós amamos nunca é guardada com carinho!

PADRE: Você vê nele algum negro?

KIMPA VITA: Isso é só uma imagem feita pelos brancos, é claro. Se fossemos nós a fazê-la, seria preta. Dessa nossa madeira escura, dura como ferro.  Mas também eu não gosto da cruz porque foi nela que Cristo foi crucificado como já disse... É uma má recordação!


PADRE: Então a senhora confirma o que anda dizendo por aí que Deus é negro?


KIMPA VITA: Deus de certeza que é negro. E mesmo Cristo não nasceu em Belém, mas aqui em Mbanza Congo... E foi batizado no Nsundi, não na Nazaré. E a mãe dele, Nossa Senhora, nasceu de uma escrava do rei Nzinga Mpangu.  E foi também aqui que Deus amassou o barro para criar o homem com as suas próprias mãos...


Vita opõe-se ao Cristo “prisioneiro” de uma Igreja que tenderia a monopolizá-Lo, um Cristo que ultrapassa e transcende os quadros institucionais, todas as categorias religiosas e culturais unicamente familiares aos cristãos do Ocidente. Cristo é Aquele que em toda a parte precede o missionário (branco ou negro) e que está presente ma cultura de cada povo e de cada nação!


PADRE: Você diz que os brancos têm origem numa pedra bruta chamada ‘fuma’ e que vocês, os negros, nasceram de duas árvores, uma negra e outra vermelha, a ‘nsanda’ e a ‘nkula’, que têm as raízes ligadas aos espíritos da terra, os ‘Nkisi-Nsi’.  É isso? Ouvi bem?  


KIMPA VITA: Ouviu! Filhos não são iguais aos pais?


PADRE : Não entendeu a pergunta? Não foi isso que eu perguntei! Responda a pergunta, por favor!


KIMPA VITA: Deus sive natura! Deus é a natureza! Se Deus é a natureza porque nós não somos também iguais ao pai, nosso criador? 


PADRE: Você foi concebida pelo seu “anjo da guarda” - Santo António?  Você é virgem? Como pode ter sido concebida?


KIMPA VITA: O senhor está falando de virgem Maria ou de mim?


PADRE: De você! 


KIMPA VITA: Se o senhor padre acredita que nossa senhora tenha sido concebida por Deus sendo virgem como não pode acreditar que eu tenha sido concebida, mesmo na condição de não virgem, por Santo António? 


PADRE: Isto é uma blasfêmia! Você não é Virgem Maria e Santo António por mais que seja santo não é Deus!  Que confusão meu Deus! Como se não bastasse ainda diz que também é Santo António!


E continuou...

PADRE : Se você diz ser Santo António como pode amamentar?


KIMPA VITA: Se o senhor padre acredita que Deus é três: pai, filho e espírito santo... Como não acredita que eu possa ser dois: uma mulher e um homem?


PADRE: Olha não me confunda! Você também é acusada de ter amamentado o seu filho!


KIMPA  VITA: Isso é pecado? Que eu saiba padre, não constitui pecado nenhum amamentar uma criança! Nem nossa nem dos outros!

PADRE: Mas a senhora sendo Santo António não pode amamentar... Se diz ser Santo António é homem, e os homens não amamentam. Então a senhora é um falso Santo António!


   
KIMPA VITA: Na nossa cultura, padre, os santos não têm sexo! 


PADRE: O que é isso nossa cultura? Quer dizer que para si as Igrejas têm que ter tradições próprias? Que blasfêmia!

KIMPA VITA: Os Apóstolos sempre fundaram verdadeiras Igrejas com tradições próprias e nem por isso deixaram de ser unidas!

PADRE: Como é possível estarem unidas com tradições próprias? Que incoerência!


KIMPA VITA: Ninguém padre pode negar que continuando unidas entre si as Igrejas de Jerusalém, de Antioquia, de Corinto, de Éfeso, de Roma... Tivessem tido as suas tradições, que lhe vinham inspiradas pelo mesmo Espírito Santo a partir justamente das respectivas culturas...


-!!!_


PADRE: Dê exemplos!


KIMPA VITA: Pedro teria seguido para Roma via Antioquia e Tiago teria ficado em Jerusalém; João ver-se-ia estabelecido em Éfeso; Paulo foi o Apóstolo que fundou mais Igrejas; O Evangelista Marcos, discípulo de Pedro e Paulo, foi o fundador da Igreja em África etc. Todas elas, porém, com suas tradições construídas a partir dos costumes, da sabedoria e da cultura, da arte e das ciências dos respectivos povos!

...!!!...

PADRE: Como você pode se considerar sacerdotisa... Santa...  Sendo..


KIMPA VITA: Sendo mulher ou negra? 


PADRE: Não era bem isso... Que eu queria...


KIMPA VITA: Pois, Senhor Padre, desde o século III ao século IV a vida cristã nas regiões setentrionais de África foi intensíssima e esteve na vanguarda, tanto no estudo teológico como na expressão literária.  Saltam-nos à memória os nomes dos grandes Doutores e escritores, como Orígenes, Sto. Atanásio e Sto. Cirilo, luminares da Escola de Alexandria; e, na outra extremidade mediterrânica de África, Tertuliano, Sto. Cipriano, e, sobretudo Sto. Agostinho, um dos espíritos mais brilhantes do cristianismo. E, entre outros tantos, não posso deixar de mencionar Sto. Frumêncio, chamado Abba Salama, que, tendo sido sagrado bispo por Sto. Atanásio, foi o apostolo da Etiópia.



  E continuou...


... Estes exemplos luminosos e figuras dos santos Papas africanos Vitor I, Melquíades e Gelásio I, pertencem ao patrimônio comum da Igreja; e os escritos dos autores cristãos de África ainda hoje são fundamentais para o aprofundamento da história da salvação à luz das palavras de Deus, que não é branco e não tem sexo, nem nacionalidade!  Portanto, como pode ver, eu não sou uma exceção...  Se não pode haver sacerdotes e profetas negros como pode haver cristãos negros, Padre? - Retorquiu filosoficamente a oradora mais célebre do reino do Congo com verdadeiro primor de eloqüência 

...!!!...


 O padre sabia que ela a tinha razão e por falta de argumentos o padre furibundo, sentenciou: 


- Bem senhores, ouviram com vossos próprios ouvidos que ela amamenta o seu bebê. Sendo assim está claro que é um “falso Santo António”. Assim decido que tanto ela como o seu rebento, filho do diabo, bem como os seus seguidores mais próximos sejam queimados por heresia.  


Kimpa Vita despertou obviamente a ira dos missionários capuchinhos e das facções nobres adversárias do antonianismo e postulantes do poder real. O próprio D. Pedro IV, de início cauteloso e hesitante em reprimir o movimento, terminou por ceder às pressões dos capuchinhos italianos, ordenando a prisão da profetisa e de São João, "o anjo da guarda" de Kimpa Vita que os frades diziam ser seu amante. O estopim ou pretexto que levou à prisão de Kimpa Vita teria sido a acusação de que tinha um filho recém-nascido, cujo choro teria sido ouvido enquanto ela o amamentava em segredo, do que resultara o seu desmascaramento como "falso Santo António”. Kimpa Vita foi presa e condenada a morrer na fogueira como herege.


A tentativa da catequese missionária em convencê-la de “seus erros de apóstata” não surtiu efeito... Kimpa Vita embora condenada a morrer na fogueira como herege do catolicismo...  Morreu santa... Morreu como “Santo António do Kongo”... Como Santo António da África... Santo António do universo... 


Em completo silêncio...  Kimpa Vita mantinha-se de pé, amarrada ao um tronco com seu bebê ao colo... Kimpa Vita cristianizada, batizada com o nome de Dona Biatriz, agora volta os olhos para os céus, para o Deus dos brancos, o Deus dos invasores, e pergunta a esse Deus em profunda prece para que serve a água lustral da religião cristã “derramada sobre os civilizados”, já que eles não têm piedade da raça negra, da infeliz e triste raça africana. Por que não escravizam os homens brancos também? Não são, os negros e os brancos, todos os seres humanos e com o mesmo direito à vida, à liberdade?  Por que os negros não podem ser santos? Por que Deus não pode ser africano?  Virgem Maria? Santo António... Que diferença há entre os pássaros de todas as cores? E os animais e as florestas, as feras e as águas? 
 Agora a lenha já está acesa... Torturada pela dor, consumida pela sede... Seus lábios carnudos, ávidos de água, mesmo assim sorriem, em constante meditação... Mantém-se ainda em pé, amarrada a um tronco, até já não sentir nem dor nem sede, as olheiras tornavam-se cada vez mais profundas. Seu olhar tornava-se glacial, sempre que via algum membro da família real presenciando sua morte... Desdenhosamente crispava-se-lhe a boca, cada vez que, ao virar cabeça, topava com algum padre! A carne some-lhe das pernas, dos braços e das faces... Os dedos queimados e ressequidos tornavam-se nodosos, as olheiras tornavam-se cada vez mais profundas... Os olhos proeminentes... Começa a chuviscar... Com a água a gotejar-lhe os cabelos (mais não o suficiente para apagar o fogo...) por sobre as espáduas e bebê que está em seu colo, que começa a ser consumido pelo fogo... Ele, já desfalecido ainda tem um resquício de vida... Ainda se contorce... De dor... Chora muito...  Seus bracinhos estão pegando fogo... Os quadris e as coxas de sua mãe já foram carbonizados... Daqui por uns minutos tudo se transformará em cinza... Em pó...   A multidão chora sua partida...

A sentença foi executada pelos padres capuchinhos, em Mbanza Kongo, numa manhã, de um dia qualquer de 1708... 

In As Estórias das Mulheres que Amo &  as Mulheres que eu amo da História  de João Portelinha -2010 (proibida a reprodução parcial ou completa)
   

  

ANTÓNIO AGOSTINHO NETO









UM DOS MAIORES POETAS ANGOLANOS : ANTÓNIO JACINTO




António Jacinto do Amaral Martins nasceu em Luanda (“embora preferisse ter nascido no Golungo Alto”, como diz Ana Paula Tavares, em “Cinquenta Anos de Literatura Angolana”) em 28 de Setembro de 1924. Conclui os estudos liceais em Luanda, no Liceu Salvador Correia de Sá, não tendo prosseguido os estudos em Lisboa, como era seu desejo. Se isso tivesse acontecido o curso seria engenharia de minas, como nos confidenciou a prima Maria Cecília. Pelos vistos, ainda chegou a despedir-se dos amigos para vir estudar para Lisboa, mas o pai acabou por mudar de ideias e o jovem António Jacinto acabaria por se empregar como funcionário de escritório.


Cedo se destacou como poeta e contista da geração Mensagem. Um dos textos já apresentado em 1997, “Um Perfil”, data de 1945, tinha então vinte anos. O estilo ainda não é o que viria a caracterizar a sua poesia, mesmo a lírica, mas nota-se já o traço crítico e até irónico que encontramos em alguns dos seus textos posteriores e mais conhecidos.
 António Jacinto teve um percurso de vida essencialmente marcado pelo envolvimento político contra a colonização e o regime fascista que perdurava em Portugal. Em consequência disso foi preso a primeira vez em 1959 e novamente em 1961, sendo desta vez condenado a 14 anos de cadeia (o julgamento aconteceu apenas em 1963) pena que iria cumprir no tristemente célebre campo do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Em 1972 foi libertado, mas com residência fixa em Lisboa. No ano seguinte fugiu para Argel, indo depois integrar a guerrilha do MPLA. 
Foi um destacado dirigente daquele movimento de libertação e após a independência de Angola foi Ministro da Cultura, de 1975 a 1978. Morreu em 23 de Junho de 1991 e está sepultado em Luanda.

A sua obra está publicada nos seguintes livros: “Poemas”, 1961,“Vôvô Bartolomeu”, 1979, “Poemas”, 1982, “Em Kilunje do Golungo”, 1984, “Sobreviver em Tarrafal de Santiago”, 1985,“Prometeu”, 1987, “Fábulas de Sanji”, 1988.



RECORDANDO

Oh! Meu Golungo em que a floresta assume
Graças infinitas; doce perfume
Que o Zenza lendário vem beijando
Recordando fatal amor tão nefando!

Zenza caprichoso, me vens contando,
Quando sereno te estava fitando,
Uma história de louco ciúme,
Numa noite de vibrante ciúme.

Em que Ela, embalada, terna e amante
Em meus braços, chorosa e anelante
Me jurava amor eterno. Tão querida!

(Sem indicação de local e data)

Nota: O manuscrito, em papel quadriculado fino e escrito a verde, provavelmente parte de uma carta, contém a seguinte dedicatória: “dedicado à terra da Natália e do Reinaldo”, dois irmãos do poeta.

C. Bom

Paisagem em frente
No espelho do horizonte
Imagem é
do fogo a Ilha de fronte.

E o Mar! O Mar
de envolver volveres de solidão?
Obsessivo
O desejo de partir
E esta maldição
Imular
De nunca chegar
E de jamais voltar!

(CT. Chão Bom, 29/3/1967)

Nota: Este poema foi publicado, como já referi, em “Sobreviver em Tarrafal de Santiago” Na versão do livro o primeiro verso passa a título, “Paisagem em Frente”, começando no verso seguinte. O nono verso do texto publicado contém a palavra “Imular” mas na versão do livro foi substituída por “Insular”










Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roca grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

 O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

- "Monangambééé..."

(Poemas)
 
Poema da alienação

Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema
o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser

O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo

“ma limonje ma limonjééé”

O meu poema corre nas ruas
com um quibalo podre à cabeça
oferecendo-se
oferecendo

“carapau sardinha matona
ji ferrera ji ferrerééé...”

O meu poema calcorreia ruas
“olha a probíncia”  “diááário”
e nenhum jornal traz ainda
o meu poema

O meu poema entra nos cafés
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda

“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”

O meu poema vem do Musseque
ao sábado traz a roupa
à segunda leva a roupa
ao sábado entrega a roupa e entrega-se
à segunda entrega-se e leva a roupa

O meu poema está na aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a passear
a fazer apetite a querer violar

O meu poema é quitata
no Musseque à porta caída duma cubata
        
“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”

O meu poema joga a bola despreocupado
no grupo onde todo o mundo é criado
e grita

“obeçaite golo golo”

O meu poema é contratado
anda nos cafezais a trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar

“monangambééé”

O meu poema anda descalço na rua

O meu poema carrega sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando

“tué tué tué trr
arrimbuim puim puim”

O meu poema vai nas corda
encontrou sipaio
tinha imposto, o patrão
esqueceu assinar o cartão
vai na estrada
cabelo cortado
        
“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”

picareta que pesa
chicote que canta

O meu poema anda na praça trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da ignorância
o meu poema nada sabe de si
nem sabe pedi
O meu poema foi feito para se dar
para se entregar
sem nada exigir

Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim-preto
a cavalgar pela vida.

(Poemas)

 
Castigo pro comboio malandro

passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
muú muú muú

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança
"Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibalé..."
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho

Se na lavra do milho tem pacacas
Eu faço armadilhas no chão,
Se na lavra tem kiombos
Eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
Mas se vai lá fogo do malandro
- Deixa!-
Ué ué ué
Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Só fica fumo,
Muito fumo mesmo.

Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos pra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
- Nem com chicote -
Finjo só que faço forca
Aka!

Comboio malandro
Você vai ver só o castigo
Vai dormir mesmo no meio do caminho.

(Poemas)
 
 
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Um retângulo oco na parede caiada Mãe

Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões nos vidros
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe

Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

(Sobreviver em Tarrafal de Santiago)
  
Oração

Mãe
Agora que tu partiste
que será do teu menino? 
Quem rirá da minhas partidas
e travessuras?
Quem terá indulgências aos erros meus
e sentirá as minhas amarguras?
Quem me contará histórias de encantar
das fadas e do fantástico
-ainda preciso delas, Mãe-
quem me ensinará as primeiras letras da Cartilha Maternal
me falará das estrelas
da África
da Europa do Atlântico do Universo
me ensinará amor pelas andorinhas e pelos humildes
e me ensinará humanidade? 
Quem?
Agora que te foste embora
(quantas lágrimas por mim choraste,
e choraste por ti à partida?)
onde um regaço para pousar minha cabeça de cansaços?
Mãe
agora que partiste
o teu menino está perdido na floresta de gigantes maus
escuta Mãe
o teu menino será forte
como quiseste
(«come Antoninho»
«come Antoninho»)
E saberá pelas estrelas
Encontrar o caminho da nossa casa
Mãe.
Agora que tu partiste
Ainda estamos sempre juntos
(cordão umbilical inquebrável nos ligou)
ainda estamos juntos
a cada raio de sol
a cada revérbero de Lua no mar
a cada murmuro lamento da floresta no Golungo
-sempre juntos
Mãe.

(Sobreviver em Tarrafal de Santiago)



Carta dum contratado

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kiesa
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!
(Poemas)
 








F. Lopes, 26 de Fevereiro de  2007