MEU ROMANCE

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O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Funjada na Casa da Prima Madalena

Enviar por Email Publicado: 8/11/2010 | Por: João Portelinha d´Angola | Em: ColunasCrónicasOpinião | Lido 84 Vezes

Por João Portelinha d´Angola 
João Portelinha d´Angola é escritor e poeta Angolano, formado em Direito e é professor universitário. 
Autor do Coluna, "Angolensis Mirabilis" no Zwela Angola.


É da praxe em todos os fins de semana juntarmo-nos em casa de algum familiar ou amigo para uma funjada.

Naquele dia era a vez, felizmente, de irmos a casa da Madalena – para nós prima Kuidukuta, por ser bem gorda, fofinha era como ela gostava que a chamassem.

Tinhamo-nos acomodado já à volta de uma enorme mesa de madeira tacula e aguardávamos impacientes pelos quitutes da prima fofinha.

Esses nossos repastos de fim de semana são bem fartos e sempre regados com bom vinho e muita cerveja. Há quem diga, e com razão, que nós angolanos vivemos em função do fim de semana. É comum, inclusive, fazermos perguntas do gênero como vai ser o teu fim semana? Ou simplesmente como é o fim de semana?

Mas as funjadas da prima fofinha são bem diferentes... Ora pela qualidade, ora pela diversidade. É de facto um regalo para os olhos de qualquer de qualquer um. Nunca faltam: a muambaKixiluanje, a kibeba assada, o kivúdia, o mufete, o sumate com jindungo Kahombó e o pirão do Huambo, que é de milho e que faço questão que nunca me falte. Em fim, um autêntico banquete para Kalú nenhum botar defeito.

Tive o privilégio de estar assentado ao lado do Zé Ivo, marido da fofinha numa das extremidades da mesa. Privilégio, quer dizer, até ver... Este, ao contrário da esposa, é um frangote, um xihuahua, embora muito simpático. É conhecido pelos amigos por Tchikuamanga (espécie de pássaro), por causa do seu nariz adunco.

Para além da tenaz fome que tínhamos, havia outra cumplicidade entre nós, os convivas: o de sabermos que aconteceria algo quando prima fofinha irrompesse daquela porta da cozinha; para além das panelas do esperado pitéu. Porque ela dissera-nos amiudadas vezes que teria uma grande surpresa reservada para nós.

E naquele momento surge a anfitriã com tudo a que tínhamos direito. Serviu, pelo menos a primeira rodada, como é d`hábito, as outras ficarem por nossa conta. Quando foi a vez do Zé, seu marido, encheu o prato de funji até ele não poder ver o parceiro ao lado...

Retirando o braço o braço dela, bruscamente disse: 

Leninha, não achas que é um exagero? – Lamentou-se o Zé todo envergonhado.

E ela:

Não tenho nada a ver com isso. Come Zé, se não vais ver o que te vai acontecer! – ameaçou.

O Zé olhava tristemente para nós, como pedindo socorro.

- Fofinha, deixa o rapaz “à la vonté”- disse-lhe sorrindo.

Não, João, esse gajo tem que comer tudo... TUDO MESMO!!!

Para nossa admiração, as súplicas e as lágrimas deste infeliz marido não eram suficientes para sensibilizar a esposa revoltada, que insistia em vê-lo comer todo aquele desproposito de comida.

Ó Madalena, dessas coisas mesmú... é qui eu... não gostú !!! - Suplicou ele numa forma interiorana, que lhe é peculiar.

A gargalhada não se fez espera, acompanhada, como é óbvio, de olhares entre os presentes. È que, sem querermos, estávamos a comparar o tamanho colossal da |Madalena que podia zanvular (dar uma boa surra) a qualquer um de nós e a pequenez do infeliz, cena que mais parecia a de David e Golias...

Kufungou, muxuxou bué, katé jifetou, mas a verdade é que não sei o Zé Ivo pancou (comeu), todo aquele pitéu. Entendemos depois que ele tinha o mau hábito de almoçar em casa da amante aos fins de semana alegando que passava fome em sua casa! Pode? Prima Madalena soube disso e quis castigá-lo assim... de uma forma bastante exemplar. Como se não bastasse, fez-lhe lembrar, ainda, que da próxima vez poria muito jindungo (pimenta) na comida dele para ficar mais esperto... Aí sim, para além de dançar fandango, certamente ficaria com os muzumbos como se fossem mordidos por um enxame de marimbondos! hahahhahahh

Nós é que não precisamos que ninguém nos obrigasse a pitar. Porque, para nós, comer não era castigo, mas sim prazer. Nem é preciso dizer que pancamos buelélé e até bisamos. Sempre, ao som de uma boa Kizomba... Pessoa que é da banda é assim mesmo... Panca bué e torra búe, principalmente quando há um bom vinho. E agora que estamos em paz, então imagina só!

Se quiserem saber como se come a feijoada made in Angola – é sem camisa! Perguntem só ao meu kota Hingo, general, se eu não estou a falar a verdade. 

E quanto ao nosso amigo Zé Ivo. “Vamos fazer mas como? Se é o problema que estamos com ele”!!!

Até a próxima funjada na casa da prima Madalena que zanvula bué mas também come-se bué! Vamos fazer mas como?

Laripó Kuví

João Portelinha d´Angola é escritor e poeta Angolano, formado em Direito e é professor universitário. Ele é autor de vários livros. O seu mais recente livro é "O DIA QUE UM NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL". Autor da Coluna, "Angolensis Mirabilis" no Zwela Angola. Visite o seu Blog João Portelinha d´Angola.
 

Wikiliquidação do Império?

 

A divulgação de centenas de milhares de documentos confidenciais, diplomáticos e militares, pela Wikileaks acrescenta uma nova dimensão ao aprofundamento contraditório da globalização. A revelação, num curto período, não só de documentação que se sabia existir mas a que durante muito tempo foi negado o acesso público por parte de quem a detinha, como também de documentação que ninguém sonhava existir, dramatiza os efeitos da revolução das tecnologias de informação (RTI) e obriga a repensar a natureza dos poderes globais que nos (des)governam e as resistências que os podem desafiar. O questionamento deve ser tão profundo que incluirá a própria Wikileaks: é que nem tudo é transparente na orgia de transparência que a Wikileaks nos oferece.
A revelação é tão impressionante pela tecnologia como pelo conteúdo. A título de exemplo, ouvimos horrorizados este diálogo – Good shooting. Thank you–enquanto caem por terra jornalistas da Reuters e crianças a caminho do colégio, ou seja, enquanto se cometem crimes contra a humanidade. Ficamos a saber que o Irão é consensualmente uma ameaça nuclear para os seus vizinhos e que, portanto, está apenas por decidir quem vai atacar primeiro, se os EUA ou Israel. Que a grande multinacional famacêutica, Pfizer, com a conivência da embaixada dos EUA na Nigéria, procurou fazer chantagem com o Procurador-Geral deste país para evitar pagar indemnizações pelo uso experimental indevido de drogas que mataram crianças. Que os EUA fizeram pressões ilegítimas sobre países pobres para os obrigar a assinar a declaração não oficial da Conferência da Mudança Climática de Dezembro passado em Copenhaga, de modo a poderem continuar a dominar o mundo com base na poluição causada pela economia do petróleo barato. Que Moçambique não é um Estado-narco totalmente corrupto mas pode correr o risco de o vir a ser. Que no “plano de pacificação das favelas” do Rio de Janeiro se está a aplicar a doutrina da contra-insurgência desenhada pelos EUA para o Iraque e Afeganistão, ou seja, que se estão a usar contra um “inimigo interno” as tácticas usadas contra um “inimigo externo”. Que o irmão do “salvador” do Afeganistão, Hamid Karzai, é um importante traficante de ópio. Etc., etc, num quarto de milhão de documentos.
Irá o mundo mudar depois destas revelações? A questão é saber qual das globalizações em confronto — a globalização hegemónica do capitalismo ou a globalização contra-hegemónica dos movimentos sociais em luta por um outro mundo possível — irá beneficiar mais com as fugas de informação. É previsível que o poder imperial dos EUA aprenda mais rapidamente as lições da Wikileaks que os movimentos e partidos que se lhe opõem em diferentes partes do mundo. Está já em marcha uma nova onda de direito penal imperial, leis “anti-terroristas” para tentar dissuadir os diferentes “piratas” informáticos (hackers), bem como novas técnicas para tornar o poder wikiseguro. Mas, à primeira vista, a Wikileaks tem maior potencial para favorecer as forças democráticas e anti-capitalistas. Para que esse potencial se concretize são necessárias duas condições: processar o novo conhecimento adequadamente e transformá-lo em novas razões para mobilização.
Quanto à primeira condição, já sabíamos que os poderes políticos e económicos globais mentem quando fazem apelos aos direitos humanos e à democracia, pois que o seu objectivo exclusivo é consolidar o domínio que têm sobre as nossas vidas, não hesitando em usar, para isso, os métodos fascistas mais violentos. Tudo está a ser comprovado, e muito para além do que os mais avisados poderiam admitir. O maior conhecimento cria exigências novas de análise e de divulgação. Em primeiro lugar, é necessário dar a conhecer a distância que existe entre a autenticidade dos documentos e veracidade do que afirmam. Por exemplo, que o Irão seja uma ameaça nuclear só é “verdade” para os maus diplomatas que, ao contrário dos bons, informam os seus governos sobre o que estes gostam de ouvir e não sobre a realidade dos factos. Do mesmo modo, que a táctica norte-americana da contra-insurgência esteja a ser usada nas favelas é opinião do Consulado Geral dos EUA no Rio. Compete aos cidadãos interpelar o governo nacional, estadual e municipal sobre a veracidade desta opinião. Tal como compete aos tribunais moçambicanos averiguar a alegada corrupção no país. O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que pode resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.
Ainda no domínio do processamento do conhecimento, será cada vez mais crucial fazermos o que chamo uma sociologia das ausências: o que não é divulgado quando aparentemente tudo é divulgado. Por exemplo, resulta muito estranho que Israel, um dos países que mais poderia temer as revelações devido às atrocidades que tem cometido contra o povo palestiniano, esteja tão ausente dos documentos confidenciais. Há a suspeita fundada de que foram eliminados por acordo entre Israel e Julian Assange. Isto significa que vamos precisar de uma Wikileaks alternativa ainda mais transparente. Talvez já esteja em curso a sua criação.
A segunda condição (novas razões e motivações para a mobilização) é ainda mais exigente. Será necessário estabelecer uma articulação orgânica entre o fenómeno Wikileaks e os movimentos e partidos de esquerda até agora pouco inclinados a explorar as novas possibilidades criadas pela RTI. Essa articulação vai criar a maior disponibilidade para que seja revelada informação que particularmente interessa às forças democráticas anti-capitalistas. Por outro lado, será necessário que essa articulação seja feita com o Foro Social Mundial (FSM) e com os media alternativos que o integram. Curiosamente, o FSM foi a primeira novidade emancipatória da primeira década do século e a Wikileaks, se for aproveitada, pode ser a primeira novidade da segunda década. Para que a articulação se realize é necessária muita reflexão inter-movimentos que permita identificar os desígnios mais insidiosos e agressivos do imperialismo e do fascismo social globalizado, bem como as suas insuspeitadas debilidades a nível nacional, regional e global. É preciso criar uma nova energia mobilizadora a partir da verificação aparentemente contraditória de que o poder capitalista global é simultaneamente mais esmagador do que pensamos e mais frágil do que o que podemos deduzir linearmente da sua força. O FSM, que se reúne em Fevereiro próximo em Dakar, está precisar de renovar-se e fortalecer-se, e esta pode ser uma via para que tal ocorra. 


16-12-2010    Visão
  

Boaventura de Sousa Santos