A bolsa atribuída a Boaventura de Sousa Santos (BSS) pelo European Research Council representa sem dúvida um ponto alto na carreira do decano dos sociólogos portugueses, recentemente jubilado. Os “espelhos estranhos” (ALICE – espelhos estranhos, lições imprevistas, é o título do projecto que mereceu esta bolsa) são uma boa metáfora, não só para exprimir a relação da Europa com o mundo, mas também para ilustrar a indiferença – ou o despeito – com que a comunidade sociológica portuguesa (pelo menos uma parte dela) olha para a projecção internacional de BSS e da sua obra.
A afirmação do Centro de Estudos Sociais (CES) na segunda metade dos anos oitenta constituiu, à imagem do seu principal dirigente, um núcleo de sociólogos potencialmente concorrente com a “escola de Lisboa” (ISCTE e ICS), até porque, desde o início, se impôs como um centro interdisciplinar que assumiu a sociologia crítica e o pensamento marxista e pós-marxista como referências importantes, apostando no estudo da sociedade portuguesa enquanto “semiperiferia” do sistema mundial, no quadro das suas relações históricas com a Europa, de um lado, e o Brasil e as antigas colónias africanas, de outro.
O CES cresceu e angariou prestígio, sendo hoje um dos dois centros de excelência nas ciências sociais portuguesas com o estatuto de Laboratório Associado do Estado. A sua composição é, de resto, muito heterogénea, tornando abusiva qualquer tentativa de reduzir o centro à actividade do seu líder. O prestígio de BSS prestigia também o CES, e o prestígio de ambos prestigia a sociologia portuguesa. Seria bom que esta verdade vingasse. E que a Associação Portuguesa de Sociologia (de que BSS é membro fundador) começasse por dar a este assunto a visibilidade que ele merece.
Com uma impressionante produção teórica nos últimos vinte anos, e estimulando uma intensa actividade de extensão, quer na formação avançada de sectores profissionais (por exemplo na área da justiça), quer no activismo cívico e político (por exemplo no âmbito do Fórum Social Mundial), BSS ganhou visibilidade e passou a ser lido, estudado e debatido em inúmeras universidades e entre activistas de movimentos sociais do mundo inteiro, em especial na América Latina. Projectos internacionais como «Reinventar a Emancipação Social» ou a sua reflexão sobre a «epistemologia do Sul» deram expressão a uma critica radical do capitalismo global, prenunciando a crise que hoje vivemos e o colapso do neoliberalismo. Isto, naturalmente, tem acicatado a concorrência de alguns sectores da comunidade académica lisboeta (em especial do ISCTE, o bastião da “sociologia pura”, sempre mais alinhada com o poder instituído), que, embora demonstrem respeito pelo “sociólogo do direito”, pretendem ignorar a dimensão da obra de BSS e, nos bastidores, acusam-no de ser normativo e messiânico.
"Eppur si muove"... O projecto “Espelhos Estranhos” pode significar um passo libertador que a Europa poderá vir a abraçar. Inverter a lógica dominante e olhar o mundo da periferia para o centro; descobrir nas margens e nos seus saberes – até aqui oprimidos – novas experiências e modos de organização da vida social e económica; sair do seu núcleo hegemónico e ver-se no espelho dos antigos povos colonizados; são caminhos que se podem apresentar no século XXI à velha Europa como passos para um novo e mais rico conhecimento de si mesma, para uma nova e mais promissora relação com os mundos por si encobertos ou descobertos ao longo do seu processo civilizacional.
Pode ser apenas um começo que lhe permita olhar para fora sem arrogância e olhar para si própria a partir de fora, superando os traumas do passado. Não sabemos se esta será a fórmula para a democratização da democracia. Mas ao reconhecer o pensamento crítico de BSS, a Europa dá provas de querer reinventar-se como berço do multiculturalismo cosmopolita e vanguarda do pensamento emancipatório.
Elísio Estanque