MEU ROMANCE

MEU ROMANCE
O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


domingo, 10 de outubro de 2010

O dia que um Ngola descobriu Portugal: Romance histórico ou história de um romance?





Há muito tempo, nosso acesso aos eventos sociais era unilateral: os livros apresentavam os fatos a partir da visão do colonizador, uma visão ditatorial e antidemocrática que para nossa ingênua imaturidade não passavam de fatos povoados de “bravos heróis”, distantes da nossa realidade. (Alguns desses heróis tiveram sua representação na literatura brasileira do século XIX, durante o Romantismo). Até mesmo nossa visão de herói era questionável. Afinal, em que arquétipo de herói se enquadram os personagens dos eventos históricos na sociedade contemporânea, ou melhor, o que os torna heróis: sua história ou seu drama, sua ousadia, sua tragédia ou quem sabe sua comicidade? Depende de a quem esse herói está representando, de que lado ele se encontra: do colonizado ou do colonizador.
A partir da conquista da liberdade de expressão, da democratização dos eventos sociais, a história perde sua versão romântica, e passa a ser observada com mais criticidade. Essa visão crítica da história impulsiona a criação da obra literária realista, e sua interpretação pode ser feita a partir de diferentes perspectivas: do autor, do descendente, do expectador, do confessor, do colonizado/dominado, do colonizador/dominador e do historiador.
Paul Veyne afirma ser a história assim como o romance uma narrativa de eventos simplificados, organizados e sintetizados. E essa síntese narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória quando evocamos o passado. A narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento. A história nos interessa porque narra, é anedótica, assim como o romance. O que diferencia a história do romance é que a história é diegesis interessa a verdade, e o romance é mimesis,  interessa a narrativa. 
 Com isso podemos afirmar que tanto a história quanto o romance são respectivamente mimesis e diegesis; que à Literatura cabe o papel de estreitar os laços do leitor com a história e cultura, tornando assim mais fácil compreendê-la inserida em determinado contexto.
Romance histórico ou uma visão romanceada da história, O dia em que um Ngola descobriu Portugal é, ao mesmo tempo, romance e narrativa de um contexto. O que nos leva a estreitar os laços com a história e cultura angolanas.  O autor, ango-brasileiro, apresenta-nos sua leitura dos eventos ocorridos entre os séculos XV e XVII, da história da colonização dos países africanos e, consequente tráfico negreiro para a mais nova colônia portuguesa, o Brasil como também aos países europeus. A história aqui simplifica, sintetiza e organiza os eventos. O romance dá conta daquilo que a memória histórica não consegue reviver, mas que é parte inseparável da cultura. Isto explica a presença e importância do contexto na criação da obra literária.
É um romance denso, com forte carga significativa, (O dia em que um Ngola descobriu Portugal) e uma viagem definitiva e decisiva para compreensão da parte noturna da história das três nações: Portugal, Brasil e África. O irônico de tudo isso é que Zumbi fez a viagem ao contrário. É como se num ato de utópica vingança o autor angolano quisesse mudar o rumo da história: Nganga Nzumba é preado em Angola e transportado ao Brasil como mercadoria num navio negreiro e, ao voltar às origens, tem o propósito de descobrir Portugal. O herói da resistência negra no Brasil, Zumbi dos Palmares nesse romance, é angolano Nganga Nzumba filho da rainha escravagista Njinga Mbandi. Aqui no Brasil consegue livrar-se da escravidão, funda Palmares e transforma-se em líder.
Esses expedientes criados pelo autor, João Portelinha D’Angola, inserem sua obra na categoria de romance paradidático, pois além das tantas informações disponíveis, instiga o leitor à pesquisa e, ao mesmo tempo envolve-o na trama narrativa,  estreitando seu vínculo com a história e cultura das ex - colônias portuguesas. Uma vez que a história é uma narrativa de eventos, cultura e romance, pode-se dizer desse paradidático romance que ele se enquadra na categoria tanto de romance histórico quanto na história de um romance, por vezes com heróis trágicos, vencidos e vencedores que fazem parte da nossa história de país colonizado com muitas manchas indeléveis.
Um texto bem elaborado de “fácil acesso vocabular” (com muitas notas explicativas), iconoclasta e revelador.
Tereza Ramos de Carvalho.

 

O descritivismo pictorial em O DIA QUE UM NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL








João Rodrigues Portelinha da Silva é romancista, contista, ensaísta, cronista e nas horas vagas, como ele próprio diz, poeta... Tomou como tema de seu romance exclusivamente consagrado ao emocionante relato da escravidão em Angola e no Brasil... Desde o começo de sua obra, teve a ambição de reproduzir com realismo o que foi o infame comércio de escravos, de maneira mais verídica e mais completa e nos mínimos detalhes, sem buscar evitar o que pudesse haver de banal ou mesmo de desagradável em tudo quanto lhe impressionara sobre a escravidão do seu continente e das duas terras que ama de paixão: Angola, a mãe preta, e o Brasil, seu filho mestiço... A obra é feita de observação puramente naturalista, com uma ampla parte psicológica das ações, bem como sentimentos dos personagens que retratou. Só pelas qualidades do estilista satisfez às leis da estética. Seu estilo é artisticamente formado, transparente e simples, fácil e claro, conduto pessoal, onde mistura realidade com ficção e, plasticamente expressiva. Mesmo nos seus livros anteriores de contos particularmente deixa entrever a sua mestria – que, aliás, de resto, angolanos e brasileiros lhe reconhecem -. Mas é nas descrições da natureza, da dor e dos sentimentos que tais qualidades se mostram mais sedutoras. Nos destinos humanos que pode descrever, sobra pouco lugar para alegria. Os quadros são mais frequentemente de cores muito sombrias, mas a força invocadora dos seus heróis jamais se enfraquece. Este romance constitui, sem dúvida, um tour de force como pintura audaciosa e amarga da vida que nos faz lembrar Brecht com suas pinturas sobre a escravidão no Brasil. Intitulou o seu primeiro romance O DIA QUE UM NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL, pensando na epopeia do reino do Ndongo e de outros povos que constituem hoje Angola e a maior parte do Brasil. O personagem principal que Portelinha escolheu para o romance, foi à formosa e lendária rainha Njinga Mbandi e o Nganga Nzumba (Zumbi dos Palmares) que na ficção são mãe e filho, mas que na realidade, embora não sejam, viveram na mesma época, e têm a mesma origem, a dos Jagas. Nzambi transportado para o Brasil como escravo é um joguete dos que o cercam, desdenhado e maltratado, como todos os outros escravos, não obstante ser “filho” de uma lendária rainha angolana. Pode-se perguntar se fora do Brasil, noutra condição social, ele teria se tornado, verdadeiramente um grande herói na luta contra a escravidão como na realidade foi e, como de resto, é bem ilustrado e romanceado pelo autor. Na realidade são poucos momentos de ficção nesta obra... Poderíamos dizer que é a realidade romanceada pelo autor. As datas, os acontecimentos, os autores, os personagens, com exceção de Tchinjila, amigo e escravo de Nzambi são reais. No decorrer deste triste episódio, que foi a escravatura, o autor se compraz em descobrir a beleza da natureza humana; liberto de toda doutrina psicanalítica, permaneceu simplesmente poeta, e soube criar a poesia pura com um traço de grandeza.
As amplas perspectivas sobre o verde doce e fresco circundado de rios azuis que brilham em todo esplendor. Há magia e a beleza retratada das florestas africanas e brasileiras com toda sua pujança circunstanciada com toda sua fauna em movimento; o barulho dos gravetos secos caindo das árvores e dos macaquinhos que pulam de haste em haste fazendo algum barulho é de extrema beleza. Encontra-se aí um sentido da vida que não nasce de um gosto puramente literário, um esforço rumo à influência livre, plena e inteira da beleza... Tudo vibra no infinito e na calma do espaço.
A análise dos personagens alcança uma profundidade notável em sua rapidez e leveza, essas figuras humanas se harmonizam com a fuga das nuvens, com o cair das chuvas, com o aparecimento do arco-íris e o seu jogo de luz, do crepúsculo à aurora de um dia novo. Graças à arte tão sutil do escritor, as palavras ganham certa ressonância e a sua música assemelha-se à de um violino de raios de luz e de cores. No entanto, se quisermos considerar esta obra tão somente no plano artístico ou literário, mesmo assim, não deixaria de ser uma obra original e importante para pesquisa mais do que qualquer daquelas obras consideradas “romances históricos” que o precedeu sobre a temática escravidão em Angola e na América Latina.
  É verdade que o “romance histórico” na América Latina e em Angola não começou propriamente com João Portelinha. Nem tampouco a temática sobre a escravidão.  Aqui, na América Latina, por exemplo, começa com a publicação de O reino deste mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier, que assim, como consequência, provocou um ciclo de intensa publicação, tanto de romances históricos tradicionais, nas décadas de 1960 e 70, como também em outros países, não sendo exceção Angola, pátria do autor, cuja publicação de Njinga Mbandi (1979) de Manuel Pacavira, confirma uma produção com muitas características do romance histórico. No entanto, os textos de O reino deste Mundo, de Carpintier, referem-se às populações africanas, sobretudo da Guiné, que foram para América como escravos, mas as populações de Angola sequestradas para este continente não são propriamente os heróis do caribe, onde se encontravam predominantemente as populações da Guiné. As populações de Angola construíram outras histórias de resistência na América Latina como a do Quilombo dos Palmares, no Brasil, liderados por Nganga Nzumba que, aqui, de uma forma inédita e magistral é abordada em estilo de romance por João Portelinha.
  A publicação deste gênero de literatura cujas características formais e discursivas diferem em alguns pontos do romance histórico teorizado por Georg Lukács em seu Le roman historique (1965) propõe uma continuação do (sub) gênero que se desenvolve em diferentes partes do mundo e que é denominada como “novo romance histórico” de características estéticas e formais inovadoras, a ironia, a paródia e as categorias da carnavalização (Bakhlin, 1981, p. 104-7), que surgem, aqui, neste livro, com algumas das estruturas desse novo subgênero do romance. Desta maneira, é possível observar o trânsito de patterns literários no interior de um projeto cultural que inclui escritores em Portugal e Angola, considerando as produções de novos romances históricos: a Gloriosa Família: o Tempo dos Flamengos, de Pepetela, o Memorial do Convento, de José Saramago e, agora, O Dia que um Ngola Descobriu Portugal, do escritor e professor João Portelinha d´Angola, que pela sua singularidade, pode também ser comparada a Negras Raízes do premiado escritor afro-americano Alex Haley!
                                    Drª. Helga Féti
 Cantora, atriz, apresentadora e crítica de Literatura angolana