Há muito tempo, nosso acesso aos eventos sociais era unilateral: os livros apresentavam os fatos a partir da visão do colonizador, uma visão ditatorial e antidemocrática que para nossa ingênua imaturidade não passavam de fatos povoados de “bravos heróis”, distantes da nossa realidade. (Alguns desses heróis tiveram sua representação na literatura brasileira do século XIX, durante o Romantismo). Até mesmo nossa visão de herói era questionável. Afinal, em que arquétipo de herói se enquadram os personagens dos eventos históricos na sociedade contemporânea, ou melhor, o que os torna heróis: sua história ou seu drama, sua ousadia, sua tragédia ou quem sabe sua comicidade? Depende de a quem esse herói está representando, de que lado ele se encontra: do colonizado ou do colonizador.
A partir da conquista da liberdade de expressão, da democratização dos eventos sociais, a história perde sua versão romântica, e passa a ser observada com mais criticidade. Essa visão crítica da história impulsiona a criação da obra literária realista, e sua interpretação pode ser feita a partir de diferentes perspectivas: do autor, do descendente, do expectador, do confessor, do colonizado/dominado, do colonizador/dominador e do historiador.
Paul Veyne afirma ser a história assim como o romance uma narrativa de eventos simplificados, organizados e sintetizados. E essa síntese narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória quando evocamos o passado. A narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento. A história nos interessa porque narra, é anedótica, assim como o romance. O que diferencia a história do romance é que a história é diegesis interessa a verdade, e o romance é mimesis, interessa a narrativa.
Com isso podemos afirmar que tanto a história quanto o romance são respectivamente mimesis e diegesis; que à Literatura cabe o papel de estreitar os laços do leitor com a história e cultura, tornando assim mais fácil compreendê-la inserida em determinado contexto.
Romance histórico ou uma visão romanceada da história, O dia em que um Ngola descobriu Portugal é, ao mesmo tempo, romance e narrativa de um contexto. O que nos leva a estreitar os laços com a história e cultura angolanas. O autor, ango-brasileiro, apresenta-nos sua leitura dos eventos ocorridos entre os séculos XV e XVII, da história da colonização dos países africanos e, consequente tráfico negreiro para a mais nova colônia portuguesa, o Brasil como também aos países europeus. A história aqui simplifica, sintetiza e organiza os eventos. O romance dá conta daquilo que a memória histórica não consegue reviver, mas que é parte inseparável da cultura. Isto explica a presença e importância do contexto na criação da obra literária.
É um romance denso, com forte carga significativa, (O dia em que um Ngola descobriu Portugal) e uma viagem definitiva e decisiva para compreensão da parte noturna da história das três nações: Portugal, Brasil e África. O irônico de tudo isso é que Zumbi fez a viagem ao contrário. É como se num ato de utópica vingança o autor angolano quisesse mudar o rumo da história: Nganga Nzumba é preado em Angola e transportado ao Brasil como mercadoria num navio negreiro e, ao voltar às origens, tem o propósito de descobrir Portugal. O herói da resistência negra no Brasil, Zumbi dos Palmares nesse romance, é angolano Nganga Nzumba filho da rainha escravagista Njinga Mbandi. Aqui no Brasil consegue livrar-se da escravidão, funda Palmares e transforma-se em líder.
Esses expedientes criados pelo autor, João Portelinha D’Angola, inserem sua obra na categoria de romance paradidático, pois além das tantas informações disponíveis, instiga o leitor à pesquisa e, ao mesmo tempo envolve-o na trama narrativa, estreitando seu vínculo com a história e cultura das ex - colônias portuguesas. Uma vez que a história é uma narrativa de eventos, cultura e romance, pode-se dizer desse paradidático romance que ele se enquadra na categoria tanto de romance histórico quanto na história de um romance, por vezes com heróis trágicos, vencidos e vencedores que fazem parte da nossa história de país colonizado com muitas manchas indeléveis.
Um texto bem elaborado de “fácil acesso vocabular” (com muitas notas explicativas), iconoclasta e revelador.
Tereza Ramos de Carvalho.
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