Há dois mundos que apesar de distintos, se interpenetram: o mundo do ser e o mundo do dever-ser. Aquele é o mundo da realidade, regido pelas leis naturais, fundadas na causalidade (circular e linear); este, por seu turno, é o mundo do direito, da fenomenologia jurídica e de suas formas de expressão. No mundo do ser vislumbram-se quatro dimensões: o comprimento (dimensão plana longitudinal), a altura (dimensão vertical), a largura (dimensão plana transversal) e o espaço-tempo (a "quarta dimensão"). O mundo do dever-ser, por sua vez, é formado, do ponto de vista puramente normativo, pela fusão de dois grandes planos (ou semiplanos) unidos por uma relação de instrumentalidade: o direito material e o direito processual. Estes se complementam, fundindo-se em um todo único, que é o ordenamento jurídico, relativamente ao qual também se pode falar em dimensões, que são: a existência, a validade, a vigência e a eficácia jurídica.
Para que possa ser invocada para produção de efeitos, a lei há de ter vigência, que é sua dimensão temporal (tempo de validade). A lei da ficha limpa é vigente. O órgão que o produziu destaca que ela teria vigência logo da sua promulgação e publicação, assim sendo, a lei da ficha limpa nesse momento teria as duas dimensões: vigência e validade! Mas para que a mesma surta efeitos imediatos é necessário outra dimensão - A eficácia. Exatamente por isso o ministro Dias Toffoli votou no sentido de jogar para o futuro a aplicação da lei. Na realidade, tal proposta vai de encontro ao artigo 16 da Constituição brasileira, que estabelece o principio da anualidade da legislação eleitoral, impedindo a aplicação da norma nestas eleições. Na ocasião, o ilustre ministro argumentou que isso garante que eventuais mudanças nas regras eleitorais patrocinadas pelas maiorias não sirvam para excluir adversários das eleições, como ocorria com frequência na ditadura militar.
O voto foi seguido pelo ministro Gilmar Mendes que foi apologista de adiar a aplicação da lei para as próximas eleições argumentando que a regra era uma cláusula pétrea e o fato de ter-se que esperar um ano é uma segurança para todos, que fazia parte de um processo civilizatório, precisa ser respeitado e que a história mostra em geral que os totalitarismos consolidam nesse tipo de fundamento ético. Hitler e Mussolini também se basearam em alguns princípios éticos. 'A ditadura da maioria não é menos perigosa para a paz social do que a da minoria', concluiu. Na realidade, O STF tem tradição de independência e desta feita “repele” o chamado clamor popular que pode ser um perigo e pode levar, muitas vezes, à prática de injustiças. Se o seguíssemos em extremis poderíamos até ter pena de morte no Brasil, já que a maioria da população é a seu favor como reflexo violência que assola o País! Foi o clamor popular que absolveu um ladrão e condenou Cristo. Pilatos, em função da pressão popular, lavou as mãos e estas mãos acabaram se transformando nas mais sujas da história. Nessa linha, quando votou o presidente da Corte, Cezar Peluso, foi contundente. Disse que não julgava de acordo com as pressões da opinião pública.
Um tribunal que atenda a pretensões legítimas da população ao arrepio da Constituição é um tribunal no qual nem o povo pode confiar'. Na realidade, o supremo tem a tradição de não abrir mão de princípios constitucionais. Então não nos devemos surpreender que tivessem votado também neste sentido os ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello que acrescentou: 'Vivemos momentos muito estranhos. Momentos em que há abandono a princípios, a perda de parâmetros, a inversão de valores, o dito passa pelo não dito e o certo pelo errado e vice-versa. Nessas quadras é que devemos ter um apego maior pelas franquias constitucionais. É uma dessas franquias nos direciona a irretroatividade da lei. Qualquer que seja o marco temporal - início das convenções ou o dia da realização das eleições - o fato é que esses dois momentos situam-se a menos de um ano da data em que publicada a lei complementar 135, disse o ministro Celso de Mello, que é o decano do STF. Na realidade, o argumento do ministro é fortíssimo já que desde os tempos imemoriais, os povos têm-se desdobrado em assegurar certos princípios que servem de indicativo jurídico para a melhor convivência em sociedade. Entre esses valores, há que distinguir o princípio da irretroatividade das leis adotado pelo nosso ordenamento jurídico que lembra imediatamente a noção de ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido, em respeito às suas realizações e aos seus feitos. Na verdade, o país precisa ter regras mais definitivas de seu processo eleitoral a cada eleição surgem novas normas. Agora, por exemplo, os políticos se mostram temerosos com as campanhas, por não saberem o que pode e o que não pode. Sempre defendemos regras claras e definitivas no processo eleitoral. Até 1997 a cada disputa tínhamos legislação nova, geralmente casuística, feita para atender a interesses de grupos. De lá para cá temos lei definitiva, muito embora, no ano da eleição, seja elaborada uma ou outra norma que venha dificultar o processo de campanha. É preciso reconhecer que o TSE tem feito esforços para interpretar e dar clareza a estas normas sobre o que pode e o que não pode. Mas infelizmente temos este problema realmente. Uma jurisprudência solidificada, que se viesse sendo aplicada ao longo dos anos, seria muito melhor. Seria uma garantia de eleições mais tranqüilas em relação aos direitos e garantias dos candidatos e dos eleitores. Mas infelizmente temos uma certa variação no que concerne à interpretação das normas. Talvez porque os juízes fiquem na Justiça eleitoral por um breve período, dois, quatro anos no máximo. Isto ocorre mesmo. Mas há quem sustente que a renovação é boa, pois oxigena os trabalhos dos tribunais. Eu, porém, sou mais adepto da segurança jurídica.
Outros ministros, porém, como Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, votaram pela aplicação imediata da lei, ao julgar que a mudança não alterou o processo eleitoral, como visa proteger a Constituição. Eles argumentaram que a lei foi aprovada antes das convenções partidárias. As legendas sabiam, portanto, quais eram as regras de inelegibilidade. E deram legenda para os fichas sujas porque quiseram e que não havia direito adquirido à elegibilidade. O direito é definido e aferido a cada eleição, assim como não há direito garantido à reeleição, disse o ministro Ricardo Lewandowski, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O posicionamento destes ministros no plenário é à tese de que a Lei da Ficha Limpa deve ser aplicada imediatamente, alegando que o que pretendia o recorrente, o candidato Roriz, era promover a completa blindagem do ato de renúncia. Rejeitaram os argumentos dos advogados de Joaquim Roriz de que as novas regras retroagiam para prejudicá-lo e de que estaria violado o princípio da presunção de inocência ao ser considerado inelegível sem condenação pela Justiça. Assim, depois de uma sessão que durou dois dias e num empate, por cinco votos a cinco, os ministros acabaram por não decidir se a nova lei vale para as eleições deste ano ou se só deveriam barrar os fichas sujas a partir das eleições de 2012. Em razão do empate, os ministros passaram a debater o que fariam diante do placar. E passaram, em clima acalorado, a discutir como declarariam o resultado do julgamento. Parte dos ministros quis dar um segundo voto para o ministro Peluso, o que atingiria a Lei da Ficha Limpa. Outra parcela defendeu que, por falta de votos, prevaleceria a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que aplicou já para estas eleições as novas regras de inelegibilidade.
O julgamento foi suspenso até que se chegue a uma solução. Uma saída poderá ser esperar o novo ministro, que será indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para substituir o ministro Eros Grau após as eleições. Outra poderá ser o que defendeu uma parcela dos ministros, por falta de votos, prevaleceria à decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que aplicou já para estas eleições as novas regras de inelegibilidade. Com isso, candidatos atingidos pela Lei da Ficha Limpa podem concorrer nas eleições deste ano, mas continuam sem saber se poderão assumir os cargos caso sejam eleitos... A Lei da ficha limpa é, sem dúvida, um avanço notável. De forma mais imediata, ela é a manifestação da sociedade, propondo diretamente a lei. De forma mediata ela é, na verdade, uma manifestação do TSE. Eu sempre entendi que é necessário se ter normas mais rigorosas com relação ao processo eleitoral porque temos grande parcela da população formada por pessoas pouco escolarizadas, facilmente enganáveis. Então é preciso que se tenham normas mais rígidas que impeçam que maus políticos, com fichas pouco recomendáveis, sejam eleitos. No entanto, o que está em discussão aqui é o respeito por princípios constitucionais e não devemos classificar os nossos valorosos ministros como sendo “aqueles que são a favor da ficha limpa” e os que são “a favor da ficha suja”... Foi uma discussão de princípios constitucionais que regem o nosso ordenamento jurídico e defendidos ministros do STF.
No entanto, dias depois... Os alunos me apresentam um jornal com os seguintes dizeres:
O STF decidiu por 8 votos a 2, que a falta do título não impedirá o eleitor de votar. Só será impedido de votar aquele que deixar de apresentar qualquer documento oficial com foto no dia do comparecimento às urnas. Segundo a decisão do Supremo, o título individualmente apresentado não será o suficiente. Será, portanto, indispensável o porte de documento com foto.
Não foi sem razão que os meus alunos perguntaram-me onde, neste caso, estava o principio da anualidade da legislação eleitoral que reza o artigo 16 da Constituição brasileira e defendida pelos ilustres ministros no caso da Ficha Limpa e por mim nas aulas anteriores em defesa do Julgamento do STF? E eu:
...!!!...
Na verdade, o país precisa ter regras mais definitivas de seu processo eleitoral a cada eleição surgem sempre novas normas. Fica até difícil ministrar aulas sobre estes assuntos pelas razões expostas...
João Portelinha
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