MEU ROMANCE

MEU ROMANCE
O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


quarta-feira, 23 de junho de 2010

DIÁLOGOS PARA LÁ DA MORTE...


  


 De onde venho e de onde vem o mundo em que vivo e do qual vivo?  Para onde vou e para onde vai tudo o que nos rodeia? Tais são as perguntas do homem, logo que se liberta da embrutecedora necessidade de ter de sustentar-se materialmente. Por que quero saber de onde venho e para onde vou, de onde vem e para onde vai tudo o que me rodeia, e que significa tudo isto? Porque quero saber se morrerei ou não definitivamente e porque desejo eu que a morte não seja um fim absoluto? Se não morro que será de mim? Se morro, já nada tem sentido... Este é o ponto de partida pessoal e aditivo de toda filosofia e de toda a religião é o sentimento trágico da vida! - Saramago, tu como ateu e comunista confesso, nunca escondestes teu desprezo  por mim, pela Bíblia e pela igreja. Não é verdade?  Escrevestes livros e ensaios com críticas ácidas à fé cristã, como o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, no qual aludes a uma eventual relação minha com Maria Madalena, com quem, segundo tu, eu teria conhecido o amor da carne e nele me ter reconhecido homem! Como se não bastasse, em outro texto também escrevestes: “Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar”. – Saramago, não achas que é muito incomodativo que eu não exista?  Porque, assim penso, desapareceria com isso toda a possibilidade de os homens acharem valores num céu inteligível; já que precisamente os homens estariam agora num plano em que somente existiriam homens, sem mim...  Sabes que o teu colega Dostoievski, também escritor, escreveu: ‘se Deus não existe, tudo será permitido’. Com efeito, tudo é permitido se eu não existisse; fica o homem, por conseguinte, abandonado; já que não se encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue! – Deus! Achas que o homem tornou-se melhor acreditando na tua existência? Sabes muito bem que as religiões nunca te serviram e nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana e que em troca diziam que prometestes paraísos e constantemente nos ameaçavas com infernos...Em teu nome, Deus, é que os homens sem escrúpulos justificam tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel das coisas... Durante séculos, Deus, a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os teus textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a vida!  Por isso é que eu sempre duvidei que existisses... Como podes ter criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do teu poder e da tua glória, enquanto os mortos se vão acumulando teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história?

         Algures na Índia, não sei bem em que lugar precisamente... Mas tu como vês tudo, sabes que não estou mentido...  Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um angolano que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. Era um guerrilheiro... Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras...  Nos Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, seqüestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalm, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em teu nome. E a escravidão de milhares de africanos?  Por isso é que eu sempre duvidei da tua existência e das religiões que diziam ser tuas... Eu somente denunciei as injustiças que faziam em teu nome...   Agora o que farás de mim, Deus?
         - Olha Saramago! Não sei... Fostes também advogado?
         - Apenas Serralheiro, Senhor.
         - Acho que te vou perdoar... Os teus argumentos são fortíssimos. A morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido com toda a humanidade... Quero-te confessar uma coisa!  Eu também sou teu fã!  Gostei daquela parte do teu livro onde me fazes um homem... Agora, sobre minha relação com Madalena é uma blasfêmia!  Confesso-te que não houve nada demais...

In Palmensis Mirabilis de João Portelinha

Nenhum comentário: