MEU ROMANCE

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O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


quarta-feira, 23 de junho de 2010

SARAMAGO ESTAVA E NÃO ESTÁ...



                             SARAMAGO, “ESTAVA E JÁ NÃO ESTÁ”...


José de Sousa (a que o funcionário do Registro Civil acrescentou Saramago, seu apelido), apareceu por lapso do funcionário do registro civil "que estava bêbado", conta ele próprio em “As Pequenas Memórias”.      Nascido numa família humilde de camponeses de Azinhaga, vilarejo da província portuguesa do Ribatejo, em 16 de novembro de 1922, embora dos registros conste a data de 18, para os pais evitarem o pagamento de uma multa por declaração fora do prazo. Não pôde freqüentar uma universidade, começando a vida como serralheiro mecânico.
            Tinha três anos quando sua família emigrou para a capital, onde as penúrias rurais apenas se transformaram em penúrias urbanas. Assim, o futuro escritor formou-se na biblioteca pública de seu bairro enquanto trabalhava numa oficina, após abandonar a escola para ajudar a manter uma casa na qual já faltava seu irmão Francisco, dois anos mais velho que foi morto logo depois da mudança.
           
A história de Saramago antes da consagração global é triste e é um registro da luta tenaz para sair dos limites impostos pela pobreza da infância. Mas, por isso mesmo, o escritor sempre se lembrou das suas raízes em todos os momentos importantes da sua vida - e, sobretudo, quando, a partir de certa altura, ele e a obra começaram a ser alvo de prêmios, homenagens e honrarias; fazia questão de lembrar sempre o quanto elas seriam fundamentais nas opções do homem em que se tornou. Fê-lo, por exemplo, em março de 2007, quando foi nomeado doutor honoris causa pela Universidade Autônoma de Madrid, ao apresentar-se assim: "Nasci numa família de camponeses muito pobres e sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem quilômetros a nordeste de Lisboa”... Em ‘As pequenas memórias’ é o título que Saramago pôs no relato de uma infância que sempre teve um pé na aldeia de onde havia emigrado. Seu romance ‘Levantado do Chão’ (1980) conta as peripécias de varias gerações de camponeses do Alentejo. Não foi seu primeiro romance, mas aquele que representou sua primeira consagração depois que ‘Manual de Pintura e Caligrafia’ rompera em 1977 um silêncio de quase 30 anos. Eram os anos que havia passado desde a aparição de ‘Terra do Pecado’, sua verdadeira, ainda que de pouco sucesso, estréia como romancista. Nessas três décadas Saramago trabalhou como administrador, empregado de seguradora e de uma editora; havia se casado e divorciado de sua primeira esposa, publicado três livros de poemas, ingressado no Partido Comunista - clandestino durante a ditadura de Salazar- e, acima de tudo, se consagrado como jornalista.
            O seu livro “O envagelho segundo Jesus Cristo” (1991) suscitou uma grande polêmica por nele o autor tentar humanizar a figura de Cristo como Pasolini fez em seu filme. Depois de saber que seu nome tinha sido riscado, pelo Governo português, da lista de candidatos ao Prêmio Literário Europeu, auto-exilou-se...  Foi morar em Lanzarote, ilha vulcânica de terra preta, poucas árvores, muito mar... Um quase deserto silencioso e solarengo, onde o casal construiu a sua “A Casa”, nome colocado em azulejos no muro branco. "Resolvemos batizá-la assim, se calhar pela minha necessidade de espetar uma pequena bandeira portuguesa, foi a afirmação da minha origem", explicou o escritor em 1999.
            Em Lanzarote, ao lado da mulher que amava, e dos três cães vira-latas que entraram para a família - Pepe, Greta e Camões, o único que sobrevive e que tem este nome porque chegou precisamente no dia em que o escritor ganhou o Prêmio Camões - Saramago encontrou o seu lugar. "Como se este mar, estas paisagens me tivessem feito recuperar a antiga impressão de permanência (de lentidão pelo menos) que todos tivemos na infância, quando os dias e as estações pareciam não querer acabar. A cada momento, a razão diz-me que o tempo passa, e mais rápido agora do que nunca, mas, como fiz escrever na contracapa do livro [Cadernos de Lanzarote], conto os dias pelos dedos e encontro as mãos cheias. Este diário não é um sinal de guerra, mas de paz comigo mesmo.”            E comenta: "será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada? Fazia questão de dizer, a cada entrevista, que, apesar da distância a sua pátria era ainda Portugal. Em 1998, após o Nobel, numa entrevista concedida a imprensa sueca afirmou: "Eu sou de onde sou. Sou de onde nasci, sou da língua que falo, sou da história que o meu país tem, sou das qualidades e dos defeitos que nós temos, sou dos sonhos e das ilusões que são nossos, ou foram ou vão ser. É daí que eu sou, é aí que eu pertenço. O que há na relação de Espanha comigo é uma grande generosidade. Eles receberam-me como se eu fosse um deles. A pátria é em Portugal, o lugar da raiz e da consciência. Mas eu tenho a sorte de ter uma espécie de país aumentado. Que se prolongou até esta ilha."
             É nesta amargura que é preciso procurar a explicação de seus azedumes em relação  a certas personalidades políticas e religiosas de seu país. Para aqueles que se mantinham em contacto com José Saramago, como eu, sabíamos que ele era de natureza ardente, sentia-se atormentado por tudo aquilo que, ao seu ver fosse tido como injustiça... No entanto, também sabíamos que ele, muitas vezes, fremia de alegria precisamente quando falava dos movimentos políticos de que ele fez parte em favor da liberdade, da democracia, da justiça social... Embora na polêmica, Saramago fosse extremamente contumaz! Como as alabardas de longas hastes usadas contra invasores de fortalezas na Idade Média, era cortante em suas críticas contra as instituições, fossem elas políticas ou religiosas. Mistura de lança e machado, a alabarda tanto servia para escalar muralhas como para “afundar as cabeças dos desafetos”. E Saramago fez isso nos livros e na vida!  Prova disso foi sua atuação no episódio em que o governo de Fidel Castro mandou executar, em 2003, três cubanos que sequestraram um barco e tentaram fugir para os EUA. Saramago condenou o regime castrista, dizendo que Cuba havia perdido a sua confiança e traído seus sonhos - o escritor era comunista e ateu -, mas, dois anos depois, voltou a elogiar Castro publicamente (Fidel e Raul mandaram coroas de flores no dia do seu funeral...) e condenar os EUA por sua "fisionomia fascista". Polêmico, ele provocou reações calorosas de Israel, em 2002, ao comparar o horror nazista no campo de Auschwitz à atuação dos militares israelenses na Cisjordânia, ocupada por Israel. No entanto, no dia da sua morte, o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, padre José Tolentino, disse a um jornal luso que "a Igreja perde um crítico com o qual soube dialogar constantemente". Pode ser... Saramago estava sempre pronto a rever suas posições, mas nunca poupou críticas ao papa Bento XVI.
             Sua escalada social teve início pela literatura de outros autores. Autodidata, após publicar o primeiro romance, ‘Terra do Pecado’ (1947), começou a traduzir escritores como Tolstoi e Baudelaire, tendo sido influenciado especialmente pelo russo em sua defesa política dos menos favorecidos. A denúncia de injustiças sociais marcou até o fim sua carreira literária. "Não se trata de instruir, senão de educar", escreveu Saramago em seu livro recém-publicado, ‘Democracia e Universidade’, em que diz que a democracia está gravemente enferma e é preciso ensinar cidadania às crianças antes que seja tarde, justificando assim que os governos prestem mais atenção à educação primária do que à universitária. Seu livro ‘Caim’ (2009), reinvenção ácida do Antigo Testamento em que Deus aparece com letra minúscula entre vírgulas e mais vírgulas. Os protagonistas da história bíblica ganham novas personalidades no livro. A conclusão da história é pessimista: seríamos todos perversos caimitas, descendentes de um assassino de sangue ruim que, no epílogo, vocifera contra o Criador pedindo que o mate, o que não acontece. Eles continuam discutindo por toda a eternidade. Vem de ‘Memorial do Convento’ esse gosto pela alegoria que marcou tão profundamente a literatura de Saramago, agradando a seus leitores mais fiéis e desagradando a alguns críticos. Em ‘A Jangada de Pedra’ (1986), Portugal é a tal embarcação do título, vagando sem rumo pelo oceano. Em ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ (1995), toda uma cidade fica cega às vésperas do fim do milênio, marcado pelo advento de uma espécie de mutação antropológica em que todos se curvam ao delírio consumista. Finalmente, em ‘A Viagem do Elefante’ (2008), um paquiderme nascido em Goa no século XVI é transportado pelos mares, chegando sujo, cansado e fedorento em terras portuguesas para cruzar a Espanha, a Itália e os Alpes até chegar a seu destino, a Áustria. A metáfora da experiência existencial humana aplicada ao elefante indiano era particularmente cara a Saramago no momento em que começou a escrever a história de A ‘Viagem do Elefante’. Foi exatamente há três anos que começaram seus problemas respiratórios e a epígrafe escolhida para o livro traduz sua pacificação com a morte: "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam."
 Era conhecido por utilizar frases e períodos compridos, usando a pontuação de uma maneira não convencional. Os diálogos das personagens eram inseridos nos próprios parágrafos que os antecedem, de forma que não existem travessões nos seus livros: este tipo de marcação das falas propicia uma forte sensação de fluxo de consciência, a ponto do leitor chegar a confundir-se se um certo diálogo foi real ou apenas um pensamento. Muitas das suas frases (i.e. orações) ocupam mais de uma página, usando vírgulas onde a maioria dos escritores usaria pontos finais. Da mesma forma, muitos dos seus parágrafos ocupariam capítulos inteiros de outros autores. Apesar disso o seu estilo não torna a leitura mais difícil, os seus leitores habituam-se facilmente ao seu ritmo próprio. Para além do estilo rebuscado, algo barroco, de longos parágrafos, ele detestava ponto final!  Quem foi que colocou o ponto final em sua vida?  É uma noticia difícil de digerir... Saramago “estava e já não está”, como ele mesmo descreveu a morte. Que diremos agora? E a imortalidade de um gênio?  Só sei que nos sentimos mais sós, que ele nos fará muita falta...
João Portelinha, escritor

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