MEU ROMANCE

MEU ROMANCE
O DIA QUE NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL

ESCRITOR & PROFESSOR


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

BIOGRAFIA DO POETA ANGOLANO ERNESTO LARA


Nasceu em Benguela no ano de 1922. Foi para Portugal, a fim de continuar os seus estudos, concluindo o curso de regente agrícola, na Escola Nacional de Coimbra. Percorreu alguns países da Europa, ganhando a vida, por vezes, como empregado de restaurante. Considerado o primeiro grande cronista de Angola. Morreu em 1977, 17 anos após sua irmã, a poetisa Alda Lara.
Obra poética:
Picada de Marimbondo, 1961, Nova Lisboa, Publicações Bailundo;
O Canto de Martrindinde e Outros Poemas Feitos no Puto, 1964, Lisboa, e. a.;
Seripipi na gaiola, 1970, Luanda, ABC;
O Canto de Martrindinde (inclui as três obras anteriores) , 1974, Lobito, Cadernos Capricórnio.

Caminhos de musseques
Caminhos dos musseques
lá onde a areia entra pelos sapatos
daqueles que têm sapatos
lá onde o sol se filtra pelas fendas
pelos buracos dos pregos
dos tetos de zinco.

Caminhos antigos.
Caminhos antigos como o Mundo.

A cidade empurrou os musseques
e o cacimbo caiu mais de mansinho
escondendo as figuras esguias
e os rostos de chumbo.

Lá
onde a esteira cobre o chão varrido todas as manhãs
lá
onde a fuba substitui todas as claridades
lá 
onde a cerveja escorre pouco
porque não há dinheiro de comprar.

Caminhos antigos
onde a eletricidade começa a fazer circular
“idéias estrangeiras”
onde os motores dos carros
acordam as madrugadas das crianças
que antigamente ouviam passarinhos.

As fendas, os muros, os tetos
os buracos dos caminhos
esboroando-se no passado
alcatrão penetrando e desmentindo a mudança
cimento e cal erguendo os muros cinzentos das fábricas
saias lutando contra os panos das velhas
telefone até.

Nas almas... um grande vazio
preenchido pelos merengues que vêm de fora.

Lá – caminhos da vida
Lá no mato. Lá no campo. Lá na floresta. Lá no estrangeiro.
Lá onde se nasce, vive e morre todos os dias
com kambaritókué ou sem ele
com um lençol simples ou uma vala comum
morrendo apenas é que tudo acaba.
A vida tem de ser dignamente vivida.
Vamos juntar as nossas cobardias
os nossos sofrimentos
as nossas ansiedades
nossas angústias
nossos sorrisos
nossos sarcasmos
a nossa coragem
nossas vidas.
Vamos
Lá – no musseque – areais vermelhos
onde passam os caminhos da vida
e vamos
dizer
corajosamente
às crianças que esperam o nosso exemplo
que este quintal
tem de ser estrumado com sangue
adubado de sofrimento
cultivado com as dores
mangueiras
anoneiras
gindungueiros
frutificando ao sol e ao luar
para quê dizer mais versos
que só o povo entende?

 (No reino de Caliban II -  antologia
 panorâmica de poesia africana de ex-
 pressão portuguesa)
Picada de marimbondo
(Para o Pila – companheiro de infância)

Junto da mandioqueira
perto do muro de adobe
vi surgir um marimbondo

Vinha zunindo
cazuza!
Vinha zunindo
cazuza!

Era uma tarde em Janeiro
tinha flores nas acácias
tinha abelhas nos jardins
e vento nas casuarinas,
quando vi o marimbondo
vinha voando e zunindo
vinha zunindo e voando!

Cazuza!
Marimbondo
mordeu tua filha no olho!

Cazuza!
Marimbondo
foi branco que inventou...

 (Antologia de poesia da Casa dos
 Estudantes do Império - Angola e
 S. Tomé e Príncipe)
Infância perdida
(para o Miau)

Nesse tempo, Edelfride,
Com quatro macutas
A gente comprava
Dois pacotes de ginguba
Na loja do Guimarães.

 Nesse tempo, Edelfride,
 com meio angolar
 a gente comprava
cinco mangas madurinhas
 no Mercado de Benguela.

Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas
a gente fugia da cidade
e ia prás pescarias
ver as traineiras chegar
ou então
à horta do Lima Gordo
no Cavaco
comer amoras fresquinhas.

 Nesse tempo, Miau,
 (alcunha que mantiveste no futebol)
 nós fazíamos gazeta
 da escola coribeca
 e íamos os quatro
 jogar sueca
 debaixo da mandioqueira.

Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

 Era no tempo
 dos dongos da ponte
 dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão

 Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

 Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

Mais tarde
vieram os passeios noturnos
à Massangarala
e ao Bairro Benfica.
E o Bairro Benfica ao luar
O poeta Aires a cantar
(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)
Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.

 Foi então que a vida me levou para longe de ti:
 parti para estudar na Europa
 mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
 meu companheiro mulato dos bancos de escola
 porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
 cheia de chipipa da mafumeira.
 Tu me ensinaste a compreender e a amar
 os negros velhos do bairro Benfica
 e as negras prostitutas da Massangarala
 (lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
     [essa mulata...)
 Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua
 de Benguela:
 era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
 quando a gente vai na Escola da Liga.
 Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
 Infância Perdida
 sonhos dos tempos de menino.

Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varre das cinzas
do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.

 Diz a tua Mãe
 que o menino branco
 um dia há-de voltar
 cheio de pobreza e de saudade
 cheio de sofrimento
 quase destruído pela Europa.

Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo e com teus irmãos
e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então
aquele calulu
de dona Ema.

 Diz a tua Mãe, Edelfride,
 que ela ainda me há-de beijar como fazia
 quando eu era menino
 branco
 bem tratado
 quando fugia da casa de meus Pais
 para ir repartir a minha riqueza
 com a vossa pobreza.
 Diz tudo isso a toda a gente
 que ainda se lembra de mim.
 Diz-lhes. Diz-lhes
 grita-lhes
 aos ouvidos
 ao vento que passa
 e sopra nas casuarinas da Praia Morena.
 Diz aos mulatos e brancos e negros
 que foram nossos companheiros de escola
 que te escrevo este poema
 chorando de saudade
 as veias latejando
 o coração batendo
 de Esperança, de Esperança
 porque ela
 a Esperança
 (como dizia aquele nosso poeta
 que anda perdido nos longes da Europa)
 está na Esperança, Amigo.

Edelfride, você não chore
saudades do Castimbala
nem lhe escreva
cartas como essa
que são de partir
meu pobre coração.

 Nesse tempo, Edelfride,
 Infância Perdida
 era no tempo dos tamarineiros em flor...

  (Antologia de poesia da Casa dos
  Estudantes do Império - Angola e

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