O nosso ilustre confrade!
Deixemos que o próprio escritor se apresente enquanto penso na crônica: “nasci em Julho de 1944, em São Paulo de Luanda, conforme consta de meu assento de baptismo no cartório da Missão de São Paulo, livro número um, cento e setenta, de mil novecentos e quarenta e cinco, folhas oitenta e cinco, verso, sou filho da dona Rita e do enfemeiro-dentista Sô Cardoso... Em Malange, onde, já se vê, passei parte da minha infância e grande parte da minha juventude, despertou-se-me o vício da leitura. Lembro-me de, quando devia ter os meus treze anitos, andar sempre a pedir dinheiro a minha mãe para comprar os livros aos quadradinhos da colecção Condor Popular. Foi nessa altura que li também muitas fotonovelas brasileiras, nomeadamente da Capricho e do Sétimo Céu. Que circulavam entre os jovens e raparigas... Mas tarde passei a ler livros mais volumosos. Nas minhas férias, consumia muitas horas a ler na biblioteca que os padres bascos tinham aberto na Maxinde, enquanto outros rapazes se movimentavam descamisados, em animados trumunos no campo da bola. (In Um cesto de Recordações de B. Cardoso) É assim que Boaventura Cardoso começa com a sua autobiografia, de uma forma despretensiosa, simples e modesta! Na realidade, ele é um dos maiores escritores angolanos da atualidade, um diplomata importante, um grande nacionalista angolano. Quero falar dele somente como escritor... Em 2002, em Luanda, lancei um dos meus livros, na União dos Escritores Angolanos. Na ocasião, perguntaram-me qual seria a tarefa principal de escritor angolano na atualidade, eu, sem, muitas delongas, respondi que era falarmos de “nós mesmos”. Isso soou meio estranho... Falarmos de nós mesmos? Indagou um presente que também era escritor! Lembro-me como se fosse hoje, que pouco depois da independência de Angola, quando se fundou a União dos Escritores Angolanos, o presidente Antônio Agostinho Neto, também poeta, mandou chamar o poeta e Ministro da Cultura, Antônio Jacinto, antecessor de Boaventura, no ministério, para que fizesse um discurso de inauguração da UEA, nessa ocasião, Jacinto, disse que era ele, o Presidente Neto quem deveria fazê-lo, na medida em que era o maior poeta angolano! Depois de muita relutância... Agostinho Neto disse: camarada Antonio Jacinto vá! Estou mandá-lo na condição de Presidente da República! Jacinto disse que ia apenas porque estava a ser mandado pelo presidente e não pelo poeta! Estou contando esta história apenas para retratar-vos que a revolução angolana foi feita por poetas e escritores... O presidente era poeta, muitos ministros também... Feliz é aquela Pátria que tem como fundador um poeta! Aqueles que não eram ainda poetas e escritores quando foram para guerrilha, como eu, tornaram-se poetas forjados pela luta. É que aprendemos com Neto que não se fazia revolução apenas com armas... Com canetas e livros, também! Outro dado interessante sobre a fundação da UEA, é que nessa ocasião, A. Neto mandou um recado, que os escritores angolanos deixassem de chorar... Que a época era de alegria, de regozijo por sermos independentes... Chegava de falar do colonialismo! Tivemos a época em que os escritores falavam da construção do socialismo... Depois quando se desmoronou o sistema socialista mundial, com as mudanças na ex-União Soviética, ficamos de certo modo órfãos... Criou-se um vazio... Dava impressão que não se tinha mais nada para escrever... Foi por isso que propus que falássemos de nós mesmos! Se observarmos os livros mais recentes do nosso confrade Boaventura, vamos perceber uma visão mais crítica sobre questões típicas da época atual; ao encenar os intensos conflitos que se acentuam na cultura urbana. Assim, traz para o espaço literário as contaminações provocadas pelas redes de idéias e credos que se estendem de forma acelerada no mundo contemporâneo angolano. É por isso, que dentre outras coisas, eu adoro o novo membro da APL, porque para além de falar “de nós mesmos”, fala de assuntos contemporâneos!
In "Palmensis Mirabilis" de João Portelinha
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